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Universos Literários 1: O Pacto com o Leitor

  • Foto do escritor: Ana Amélia
    Ana Amélia
  • 28 de set.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 16 de out.



Olá, aspirante a torturador de leitores (no bom sentido, claro).

Vamos começar com um pequeno exercício de honestidade. Qual é a maior mentira que já contaram a você sobre escrever ficção? Arrisco um palpite: a de que sua história precisa ser "realista". Besteira. Bobagem. Uma falácia que provavelmente já assassinou mais romances na gaveta do que qualquer bloqueio criativo.

A realidade é caótica, muitas vezes ilógica e, convenhamos, entediante na maior parte do tempo. Se quiséssemos realismo puro, leríamos relatórios da receita federal. O que nós, escritores e leitores, buscamos não é um espelho do mundo, mas um vitral: uma versão da realidade rearranjada, colorida e que, acima de tudo, faça sentido dentro de sua própria moldura.

E o nome dessa moldura, a cola que une os cacos de vidro da sua imaginação, é a verossimilhança. Nós vamos dissecá-la neste curso de 17 aulas


O Contrato que Ninguém Assina, mas Todo Mundo Exige


Vamos direto ao ponto: verossimilhança não é realismo. Realismo é um movimento literário e estético que busca retratar a vida "real" a partir de seus princípios. Verossimilhança, por outro lado, é um contrato para engajar o leitor. É um pacto de credibilidade que você, o autor, firma com o leitor na primeira página.

As cláusulas são simples: "Eu vou te contar uma mentira", diz o autor. "E eu vou acreditar", responde o leitor, "contanto que você seja consistente com as regras da sua própria mentira".

Se o contrato é quebrado, o leitor se sente traído. A mágica não está na ideia mirabolante; está na consistência das regras que governam a psicologia, a física ou a biologia do seu universo.

Vamos aos truques dos mestres para provar esta tese.


A Lição 1: O Absurdo Burocrático de Kafka



Colagem surrealista de um besouro gigante e realista de terno, preso num quarto de linhas duras. Na parede, um contrato legal brilha, simbolizando o pacto da verossimilhança.

A tese de Franz Kafka é que o impossível se torna crível quando as consequências são tratadas com a lógica mais mundana e burocrática possível.

A Metamorfose começa com a premissa de que o caixeiro-viajante Gregor Samsa acorda transformado em um inseto monstruoso. O truque de Kafka é fazer com que a preocupação de Gregor não seja a metamorfose, mas o atraso no trabalho. Analise esta cena com a frieza de um cirurgião, focando em como a ausência de pânico sela o pacto de credibilidade:


Quando Gregor Samsa acordou certa manhã de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso.

Estava deitado sobre o dorso duro como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, pardo, dividido por nervuras em segmentos. A colcha, quase a ponto de escorregar de vez, mal cobria o ápice do montículo. Suas numerosas pernas, lastimosamente finas em comparação com o resto de seu corpo, agitavam-se desamparadamente diante de seus olhos.

"O que aconteceu comigo?", pensou. Não era um sonho. Seu quarto, um quarto humano, bem que um pouco pequeno, mas um quarto de verdade, estava ali, tranquilo, entre as quatro paredes que lhe eram familiares.

"Devo ter dormido mal", pensou ele. A primeira coisa que pensou foi na sua profissão.


A preocupação de Gregor não é com sua nova condição de artrópode, mas com seu chefe, com o trem das sete, com sua vida medíocre de caixeiro-viajante. Kafka ancora o evento mais inacreditável do mundo na reação mais crível e mundana possível. A verossimilhança de A Metamorfose não vem da transformação, mas da prova irrefutável de que, mesmo sendo um besouro monstruoso, Gregor Samsa continua sendo, em sua essência, um homem ansioso e oprimido pelo trabalho. As consequências do impossível são tratadas como fatos.


A Lição 2: O Banal Mágico de García Márquez



Gravura antiga de uma chave. Os dentes da chave formam a silhueta de uma cidade fantástica. A mão que a segura é feita de palavras, representando a escrita como chave para mundos críveis.

Agora, vamos inverter a lógica. Se Kafka torna o absurdo crível através do banal, outros mestres tornam o banal crível através do mágico. É o caso do nosso querido Gabo. Sua tese é que a verossimilhança nasce da perspectiva interna: o que é cotidiano para nós pode ser um milagre em seu universo.

No clássico Cem Anos de Solidão, os ciganos trazem invenções do mundo exterior para Macondo, um vilarejo isolado onde a realidade se comporta de forma mágica. O objeto aqui é o gelo, que nunca foi visto na aldeia. Concentre-se em como a descrição eleva o banal à categoria de assombro:




Quando foi aberta, a arca deixou escapar um hálito glacial. Dentro havia apenas um bloco enorme e transparente, com infinitas agulhas internas nas quais se despedaçava em estrelas de cores a claridade do crepúsculo. Desconcertado, sabendo que as crianças esperavam uma explicação imediata, José Arcadio Buendía atreveu-se a murmurar:

— É o maior diamante do mundo.

— Não — corrigiu o cigano. — É gelo.

Ele o aproximou da arca, e Aureliano pôs a mão no gelo, e a deixou por vários minutos, com o coração afogado de medo e de júbilo. Sem saber o que dizer, tirou a mão. E então disse:

— Está fervendo.

Seu pai o corrigiu:

— O contrário.


García Márquez pega um objeto do nosso cotidiano e o descreve com o assombro de quem vê um milagre. A reação de Aureliano, "Está fervendo", é factualmente errada, mas emocionalmente perfeita. A verossimilhança, aqui, é construída pela perspectiva. A lógica interna de Macondo dita que gelo não é um simples estado da água, mas uma invenção assombrosa. Gabo nos força a entrar na cabeça dos personagens e a aceitar suas regras.


A Lição 2: O Realismo Coerente de Graciliano Ramos


Para provar que esta regra não é exclusiva do Realismo Mágico ou do Absurdo, vamos ao oposto: o Realismo Duro de Graciliano Ramos. A tese dele é que a verossimilhança nasce da consistência implacável do ambiente e do caráter, não deixando espaço para a dúvida do leitor.

Em Vidas Secas, o pacto com o leitor é a credibilidade da miséria no sertão brasileiro. A cena aqui não tem milagre, mas a rotina árida e circular da luta pela sobrevivência. O trecho foca na fusão entre o homem e a aridez do seu mundo, mostrando como a paisagem é internalizada no corpo e na alma de Fabiano, e como a descrição coerente sela o pacto de credibilidade:


Fabiano era seco, tinha os ossos salientes. O sol, que o fizera calar-se durante anos, tinha-lhe queimado a boca, os olhos, e não lhe deixara rugas. A roupa, que se lhe pegava ao corpo, esfiapava-se, de modo que ele parecia um esqueleto. De manhãzinha punha a cuia na cabeça, apanhava o facão e o gibão, e andava. Sinha Vitória, magra e sofredora, espreguiçava-se deitada. Os meninos, quietos e sarnentos, estavam perto. Ele não era de queixas. Tinha-se acostumado à vida no deserto. As pulgas esvoaçavam no ar.


Graciliano constrói a verossimilhança pela ausência de exceções. O mundo é seco, o corpo é seco, a fala é seca. O gênio de Graciliano está em não trair a voz de seu personagem. Note, inclusive, a técnica sutil (chamada Discurso Indireto Livre) em que o narrador (em terceira pessoa) assume a linguagem e a simplicidade do pensamento de Fabiano, dizendo que "Fabiano era seco, tinha os ossos salientes". Essa fusão de vozes impede que o leitor sinta a distância e reforça o contrato: o mundo é árido, a vida é simples e a linguagem também.


A Regra de Ouro da Verossimilhança


Três mestres de universos radicalmente diferentes (o burocrático, o mágico e o árido) nos ensinam a mesma lição. Para aplicar isso em sua escrita, guarde esta hierarquia de regras:


A REGRA MESTRA: A CONSISTÊNCIA INTERNA


O Princípio Supremo: O seu universo (seja ele qual for) deve ter uma disciplina quase militar. O leitor perdoa o inseto gigante, mas não perdoa a contradição. Suas regras devem ser válidas da primeira à última página.


OS TRUQUES PARA SELAR O PACTO (TÉCNICAS DE COERÊNCIA)


  1. O Truque de Kafka (Absurdo Crível): Se você introduz um elemento absurdo, as consequências desse evento devem ser tratadas com a lógica mais mundana e rotineira possível. (A preocupação é a conta, não o milagre).

  2. O Truque de García Márquez (Banal Mágico): Se você introduz um elemento mundano, ele deve ser descrito com a linguagem e a perspectiva do seu universo ficcional. (O gelo é um diamante; a chuva dura anos).

  3. O Truque de Graciliano Ramos (Realismo Coerente): Se você constrói um ambiente com regras claras (a miséria, a opressão), cada detalhe (roupa, fala, ação) deve reforçar essa regra, sem exceções ou alívios não justificados.

  4. O Truque não contei: Como Machado de Assis Quebrou a Quarta Parede (e Por Que Isso Mudou)


É exatamente nesse ponto, na lapidação da lógica do seu mundo, que a conversa entre autor e revisor se torna uma caça ao tesouro, buscando os pilares que sustentam a sua história. Seu alicerce está firme?

Na Letra & Ato, nosso método de revisão dialogal é uma abordagem holística no eixo autor-texto-leitor, focada em compreensão, reconhecimento e apoio. Entramos na revisão de estilo e na revisão estrutural para buscar falhas na Consistência Interna – o ponto onde a mentira do autor se torna incoerente. Nossos 35+ anos de experiência e os dois revisores por obra garantem que essa disciplina técnica seja aplicada ao máximo do potencial do seu texto.



Quer Escrever Bem? Leia e Leia e Leia...

📚A Estante de Ana: O Visconde Partido ao Meio de Italo Calvino

Se gostou de Kafka, vai amar Calvino. O autor italiano trata o absurdo de um visconde que volta da guerra dividido em duas metades (a boa e a má) com a mesma frieza lógica, explorando as consequências verossímeis dessa cisão bizarra na vida cotidiana do feudo.

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