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O Narrador Fofoqueiro: Como Machado de Assis Quebrou a Quarta Parede (e Por Que Isso Mudou)

  • Foto do escritor: Ana Amélia
    Ana Amélia
  • 26 de set.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 3 de out.




Cena surrealista mostrando uma página de livro se rasgando para revelar uma rua do século XIX, simbolizando o narrador que quebra a quarta parede para interagir com o leitor.

E aí, pessoal? Ana Amélia na área, pronta para mais uma sessão de autópsia literária. Hoje, vamos meter o bisturi num dos maiores tabus para escritores iniciantes: o tal do "mostre, não conte".

Vocês já devem ter ouvido isso mil vezes, né? É quase um mantra. "Não diga que a personagem está triste, mostre-a chorando." "Não diga que o dia está frio, mostre a fumaça saindo da boca das pessoas." É um ótimo conselho, sem dúvida. Mas... e se eu dissesse que um dos maiores gênios da nossa literatura adorava quebrar essa regra com um sorriso cínico no rosto?

Vamos falar sobre uma figura fascinante: o Narrador Onisciente Intruso. Ou, como eu carinhosamente o chamo, o Narrador Fofoqueiro.


O Intrometido Clássico: Machado de Assis e o Narrador Fofoqueiro


Imaginem o narrador onisciente padrão: uma espécie de Deus que tudo vê, tudo sabe. Ele conhece o passado, o futuro e os pensamentos mais secretos de todas as personagens.

Agora, imaginem que essa câmera celestial tem boca e não consegue ficar calada. Esse é o nosso amigo, o Narrador Intruso. Ele não se contenta em apenas narrar os fatos. Ele para a história, vira-se para você, leitor, e solta um comentário. Ele dá sua opinião, faz uma digressão filosófica, julga a moral de uma personagem ou até mesmo solta um "Imaginem só que absurdo!".

Ninguém no Brasil fez isso com mais maestria do que ele, o Bruxo do Cosme Velho. Para provar, peguei um trecho do conto "Pai contra mãe", que está na coletânea "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século". Prestem atenção em como ele para a ação para bater um papo com a gente:


Ora, pegar escravos fugidios era um oficio do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal oficio por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

Dissecando o "Truque"


Viram só? A narrativa congela e ele vira para nós, os leitores, e começa a explicar a profissão de "pegador de escravos". Ele não está mostrando Cândido Neves em ação ainda. Ele está contando e comentando o universo da personagem. Com isso, ele cria uma cumplicidade imediata com o leitor. É como se nos puxasse para um canto e dissesse: "Olha, antes de eu te contar a história desse cara, deixa eu te explicar umas coisinhas...".

Mas tudo tem seu probleminha, né?

Mas, e se o leitor não gostar da fofoca? Mesmo que haja a cumplicidade, a história perde seu lugar e um pouco de sua importância, pois o pacto ficcional é rompido. (Leia 👉 A Arte de Construir Universos Críveis 1: O Pacto com o Leitor). O representado (a história) é suspensa: o leitor toma consciência que está fora dela. A mágica da imersão se dilui.

Mas o Bruxo de Cosme Velho tinha lá seus truques. Leia: 👉O próximo nível de Machado de Assis: do narrador fofoqueiro ao meta-discurso


Para Onde Foi o Fofoqueiro? Uma Janela para o Contemporâneo


"Certo, Ana, Machado era genial. Mas você teve que buscar um autor de dois séculos atrás. Ninguém mais escreve assim, ou estou enganado?"

Você não está. E essa é a beleza da coisa. A literatura muda. O que era vanguarda no século XIX pode soar datado hoje. Com o Modernismo, no início do século XX, o foco da narrativa mudou drasticamente. A câmera celestial de Machado deu lugar a um mergulho profundo na mente das personagens.

O objetivo deixou de ser o grande painel social comentado pelo narrador e passou a ser a imersão psicológica. A ideia agora era fazer o leitor sentir o que a personagem sente, ver o mundo através de seus olhos, de seu fluxo de consciência. Um narrador que para a história para conversar com o leitor quebra essa imersão.

Para ilustrar essa mudança, vamos espiar outra mestra, Clarice Lispector, com seu conto "Amor", da mesma antologia. Vejam como a onisciência aqui funciona de um jeito completamente diferente:


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação. Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores.


Um Novo Tipo de Onisciência: O Mergulho Psicológico


Perceberam a diferença? A narradora aqui também é onisciente. Ela sabe o que Ana sente ("meia satisfação"), conhece a essência de seus filhos ("uma coisa verdadeira e sumarenta") e seus pensamentos mais profundos ("podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador").

Mas em nenhum momento ela se dirige a nós. Não há "Ora, Ana era uma dona de casa que..." ou "Imaginem vocês o cansaço dela...". Tudo o que sabemos é filtrado através da consciência da própria personagem. Nós não estamos ouvindo sobre a Ana; nós estamos sendo a Ana naquele momento. A onisciência aqui não é intrusiva, é imersiva.


Intrusão ou Imersão: Qual Arma Escolher?


Então, o narrador intruso morreu? Não, claro que não. Ele apenas se tornou uma ferramenta mais específica, menos comum. A escolha entre um estilo "machadiano" e um "clariciano" depende inteiramente do que você quer causar no leitor.

  • Use o Narrador Intruso (à la Machado) se você busca:

    • Ironia, distanciamento crítico.

    • Um tom de crônica, de conversa.

    • Debater ideias e costumes abertamente com o leitor.

    • Criar uma voz narrativa que seja, ela mesma, uma personagem central.

  • Use a Onisciência Imersiva (à la Clarice) se você busca:

    • Profundidade psicológica.

    • Criar empatia e identificação imediata com a personagem.

    • Fazer o leitor vivenciar o mundo através de uma perspectiva particular e subjetiva.

    • Uma prosa mais sensorial e poética.


Conhecer os clássicos nos dá a base. Entender os modernos nos dá a perspectiva. O importante não é decretar a morte de uma técnica, mas entender seu funcionamento e saber que o arsenal do escritor é vasto.

Agora, vão lá e decidam: hoje vocês querem fofocar com o leitor ou mergulhar na alma de alguém? A escolha é toda de vocês.


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