Forje seu Estilo de Escrita: O Sussurro de Mia Couto vs. a Torrente de Raduan Nassar
- Ana Amélia

- 16 de set.
- 5 min de leitura

E aí, dicionaristas de sentimentos e arquitetos de mundos? Ana Amélia na área, com o bisturi afiado. Hoje, vamos mergulhar em um dos aspectos mais viscerais da literatura: o ritmo. Mais especificamente, como a música interna de um texto, sua cadência, define um estilo de escrita e cria universos inteiros.
Existem autores cuja prosa é um riacho gentil, que nos convida a boiar. E existem outros cuja prosa é uma enchente, que nos arrasta sem pedir licença. Para mostrar esses dois extremos da maestria, vamos analisar dois gigantes da língua portuguesa.
O Encantamento pela Palavra: A Prosa-Sussurro de Mia Couto
Como já disse por aqui, Mia Couto não escreve, ele benze. Sua prosa é um lugar onde a fronteira entre poesia e narrativa se dissolveu na chuva de Moçambique. Ele não descreve a realidade; ele a sonha no papel, e a gente, leitor, é convidado para dentro desse sonho. A cadência de sua escrita é parte fundamental dessa feitiçaria.
Relembrem este trecho do início de Terra Sonâmbula:
Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos trilhos de areia, em vez de carros, eram valas que se arrastavam, serpentes de um rio sem água. E as acácias, desgrenhadas, varriam com seus ramos a poeira do chão. Um mundo que se despia. Aos lados da estrada, os paus de pilar o céu tinham sido incendiados e o capim, de tão calcinado, mudara a sua cor. Nesse deserto, as únicas cores que sobravam eram as que desmaiavam no horizonte.
A autópsia rápida:
Ritmo Onírico: Leia em voz alta. A cadência é suave, hipnótica. As frases são bem estruturadas, com pausas claras, fluindo como as "serpentes de um rio sem água". É uma prosa para embalar.
Linguagem Mítica: As metáforas ("paus de pilar o céu") e personificações ("a guerra tinha morto a estrada") não são meros enfeites. Elas são o mundo. A linguagem não descreve a magia, ela é a magia.
Efeito de Encantamento: O resultado é um texto que nos acolhe, que nos puxa gentilmente para sua lógica interna, mesmo quando descreve um cenário de desolação.
A linguagem de Couto é um convite. Ele nos pega pela mão e sussurra uma história ao pé do ouvido.
O Contraponto: A Prosa-Torrente de Raduan Nassar

Agora, preparem o fôlego. Se a prosa de Couto é um rio sinuoso, a de Raduan Nassar é um dilúvio bíblico que arromba a porta. Em sua obra-prima, Lavoura Arcaica, ele mostra que o estilo de escrita pode ser uma força da natureza, uma torrente que aprisiona o leitor em uma espiral de paixão, fúria e memória.
Vejam esta passagem que descreve a ordem opressora da casa, personificada na figura do pai durante o jantar. A citação é longa de propósito, pois o tamanho e a forma são a própria mensagem:
era sempre assim que o pai nos recebia na volta da lavoura, de pé no alto da escada, de onde nos contava um a um com seu olhar de argúcia, e só depois de recontar o rebanho disperso, é que ele, lento, se punha à nossa frente, nos conduzindo em silêncio à mesa, onde ele ocupava a cabeceira e presidia o jantar, repartindo a todos o pão com suas mãos grossas, enquanto a mãe, na outra ponta, de cabeça baixa, mal ousava erguer os olhos, temerosa da autoridade que descia daquela barba espessa, uma barba de profeta, que lhe afogava as palavras na garganta, e nós, os filhos, perfilados na ordem das idades, sabíamos que um simples olhar do pai, um pigarro que fosse, bastaria para nos sentar mais retos na cadeira, pois naquela casa tudo se submetia à sua lei, uma lei antiga, gravada em pedra, e que enchia o ar de um peso que quase nos sufocava.
Vamos tentar dissecar o furacão:
Prosa Torrencial (A Sintaxe): Observe que o trecho inteiro é quase uma única sentença. Nassar constrói um período longo, febril, cheio de orações subordinadas que se encaixam umas nas outras sem nos dar um ponto final para respirar. Não é um erro; é um projeto. Ele nos força a sentir a mesma falta de ar, a mesma opressão que os filhos sentem.
Ritmo Bíblico (O Léxico e a Repetição): Palavras como "rebanho", "profeta", "lei antiga, gravada em pedra" não estão aí por acaso. Elas elevam uma cena doméstica à categoria de um rito sagrado e terrível. A estrutura repetitiva ("era sempre assim", "era ele que") funciona como um mantra, uma ladainha que reforça a natureza imutável e cíclica daquela opressão.
Tensão Acumulada (O Efeito): O resultado é claustrofóbico. A forma da escrita espelha perfeitamente o conteúdo. O leitor não lê sobre a tensão; ele a experimenta na própria pele, na necessidade de buscar ar ao fim da frase.
Enquanto a poesia de Couto liberta a magia do mundo, a poesia de Nassar aprisiona o leitor na intensidade psicológica de seus personagens. A lição aqui é monumental: o ritmo, a pontuação, o tamanho da sua frase não são detalhes técnicos. São ferramentas poderosíssimas para controlar a emoção e a experiência do leitor.
Entender essa arquitetura invisível da prosa é o que faz a diferença. E é nesse nível de profundidade, na conversa sobre a intenção por trás da forma, que a filosofia da Letra & Ato encontra seu propósito: ajudar seu texto a não só dizer algo, mas a ser algo.
☕Vamos Conversar?
Você leu sobre o sussurro de Couto e a torrente de Nassar. Agora, ouça seu próprio texto. Qual é a música dele? É uma melodia suave? Uma batida frenética? Um silêncio cortante? Seu ritmo está a serviço da emoção que você quer causar ou está apenas levando as palavras de um ponto a outro?
Encontrar a cadência certa, esse pulso que dá vida à história, é um dos trabalhos mais refinados da escrita. E, muitas vezes, um ouvido externo pode ajudar a afinar o instrumento.
Que tal começarmos essa conversa? Envie um pequeno trecho do seu texto para a gente. Faremos uma amostra da nossa revisão, sem custo e sem compromisso. É o nosso jeito de mostrar como olhamos para um texto: com o rigor de um gramático e a alma de um leitor que busca a canção única que só você pode compor. Afinal, a voz do seu texto não está só nas palavras que você escolhe, mas na música que você as obriga a dançar.

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