Mais que Humor: Como Verissimo Transformou o Cotidiano em Alta Literatura
- Ana Amélia

- 31 de ago.
- 5 min de leitura

O Silêncio Depois da Piada: A Genialidade de Verissimo na Arte da Crônica
Tem dias que o mundo fica mais quieto. Não é um silêncio de paz, mas de ausência. É o que acontece quando uma das vozes mais inteligentes, sagazes e divertidas do nosso tempo se cala. A partida de Luís Fernando Verissimo deixa esse tipo de silêncio. Um silêncio que ecoa depois da última piada, da última sacada genial, da última crônica que nos fez rir e, no segundo seguinte, pensar.
Muitos vão lembrar do Verissimo como o humorista. E estão certos. Mas aqui, no nosso cantinho de obcecados pela palavra, eu quero falar do Verissimo artesão. Do mestre que, com uma economia de palavras que faria Hemingway parecer prolixo, construía universos de significado em 800 palavras. Porque o humor dele, meus caros, não era mágica. Era técnica. Pura, lapidada e brilhante técnica de escrita.
Enquanto meu colega Paulo André certamente escreveria um ensaio denso sobre "A Função Sociológica do Riso na Pós-Modernidade Brasileira através do Prisma Verissimiano", eu prefiro puxar a cadeira e fazer o que sempre fazemos aqui: abrir o capô para ver o motor funcionando. Vamos espiar os "truques" do mestre.
Truque 1: A Lupa sobre o Ridículo Cotidiano
A matéria-prima de Verissimo era a nossa vida banal. A fila do banco, a conversa de elevador, a briga de casal por causa da pasta de dente, a paranoia com o que o vizinho vai pensar. Enquanto aspirantes a gênios se debatem para criar tramas mirabolantes sobre dragões ou crises existenciais em cenários exóticos, Verissimo colocava uma lupa sobre o pão com manteiga e extraía dele uma ópera.
Ele nos ensinou que a literatura mais potente muitas vezes não grita, mas cochicha uma verdade universal a partir de uma cena minúscula. A grande sacada não é inventar o extraordinário, mas revelar o quão extraordinariamente ridículo o nosso ordinário pode ser. Vejam este trecho de uma de suas crônicas clássicas, "O Lixo":
Um dia, um vizinho meu, que acabara de se mudar para o prédio, me disse, com um ar triunfal:
— Descobri o seu segredo.
Assustado, perguntei qual era.
— Você não joga nada fora.
E contou que, bisbilhoteiro, tinha notado que o meu saco de lixo era sempre o menor e o mais leve de todos. Enquanto os outros vizinhos lotavam os seus de restos de comida, jornais velhos, embalagens e entulhos em geral, o meu mal continha o indispensável. Concluíra que eu era um desses orientais que não desperdiçam nada, ou que não comia em casa, ou que, sei lá, comia o lixo.
— Engano seu — respondi. — Meu segredo é outro. Eu espalho o meu lixo.
E expliquei. Em vez de concentrar todo o lixo que produzo num só saco e entregá-lo ao mundo como um retrato fiel da minha intimidade, eu o distribuo. Um pouco em cada lata de lixo da cidade.

Percebem? A premissa é simples: um homem e seu lixo. Mas a partir dela, Verissimo tece uma crônica inteira sobre privacidade, julgamento social, a neurose da vida urbana e a imagem que projetamos para o mundo. Ele não precisou de um parágrafo de adjetivos para descrever a paranoia do narrador. A ação dele — espalhar o lixo pela cidade — diz tudo. É a velha máxima "mostre, não conte" elevada ao nível da maestria. A genialidade está em identificar o potencial cômico e filosófico na situação mais prosaica possível.
Truque 2: A Arquitetura Impecável da Virada
Se a observação do cotidiano era a fundação, a "virada" era a viga mestra da arquitetura de Verissimo. Muitas de suas crônicas funcionam como uma longa e elaborada preparação para o punchline. Ele nos conduz por um caminho, nos faz acreditar em uma realidade, cria uma expectativa e, na última linha, puxa o tapete com uma frase que ilumina e ressignifica todo o texto anterior.
Essa não é uma tarefa fácil. Exige um controle narrativo absoluto. Cada palavra, cada vírgula, é um tijolo colocado no lugar certo para que o edifício não desmorone antes da hora. A piada, no caso dele, nunca é gratuita. Ela é a consequência lógica e, ao mesmo tempo, surpreendente de tudo que foi construído. É o arremate que transforma uma história divertida em algo memorável. Peguemos o exemplo da crônica "Papo de Anjo":
— Não aguento mais. Aquele cara lá embaixo, de novo.
— Qual?
— Aquele de sempre. O que vive de joelhos.
— Ah.
— Vive de joelhos, chorando e pedindo perdão. Que mania! Se a gente perdoasse todo mundo que pede perdão, onde é que este Céu iria parar? Ia virar uma zona.
— É.
— E o que ele fez, mesmo?
— Acho que roubou um pão.
— Roubou um pão e está há dois mil anos de joelhos, pedindo perdão. Não tem mais o que fazer, não?
— Parece que não. Mas não é por causa do pão.
— Não?
— Não. É por causa da mãe dele. Parece que ele falou uma coisa que a deixou muito triste.
— O que ele disse?
— Disse "Hoje estarás comigo no Paraíso". E furou.
Toda a crônica é um diálogo aparentemente casual entre dois anjos entediados. A linguagem é coloquial, quase burocrática. Somos levados a pensar na mesquinhez do Paraíso, na repetição, no tédio da eternidade. A revelação final sobre quem é o "cara lá embaixo" (o bom ladrão, Dimas) e a natureza da sua "falha" não apenas provoca o riso, mas nos dá um tapa. É uma piada teológica, uma crítica à burocracia da fé e uma humanização absurda de uma das passagens mais solenes do cristianismo. Tudo isso em uma única frase. Isso, meus amigos, é o poder da palavra exata no lugar exato.
É essa busca pela precisão, pelo ritmo que valoriza a piada, pela clareza que não subestima a inteligência do leitor, que nós na Letra & Ato vemos como o âmago de um texto que funciona. O trabalho de um bom editor é, muitas vezes, ajudar o autor a encontrar essa clareza, a construir sua própria "virada" de forma eficaz, garantindo que cada palavra trabalhe a favor da história. É um diálogo para afiar a ferramenta, exatamente como Verissimo afiou as suas à perfeição.
Ele se foi, mas deixou a caixa de ferramentas para quem quiser aprender. Deixou a prova de que para escrever bem não é preciso ser solene, hermético ou "profundo". Muitas vezes, a profundidade maior se esconde num sorriso de canto de boca. E por essa lição, e por todas as risadas, nosso eterno obrigado.
☕ Um café e uma primeira conversa
Seu texto, seja ele uma crônica, um romance ou um ensaio, carrega um potencial único. Às vezes, o que falta é apenas um segundo olhar, um diálogo atento para encontrar a palavra exata que destrava uma ideia ou a estrutura que faz sua história brilhar. Acreditamos que a revisão não é sobre apontar erros, mas sobre iluminar possibilidades.
É por isso que nosso primeiro passo é sempre uma conversa. Que tal nos enviar um trecho do seu trabalho para uma amostra da nossa revisão? Sem compromisso. Será um prazer tomar esse café (mesmo que virtual) com você e seu texto, e juntos descobrirmos a força que já existe nas suas palavras.
A piada genial precisa do timing perfeito; o grande romance, da revisão precisa. No fim, tudo se resume a encontrar a palavra certa para não deixar a história morrer no silêncio.
Ana Amélia
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