Universos Literários 5: Ponto de Vista Narrativo
- Adorama

- 15 de out.
- 7 min de leitura
Olá, arquitetos da perspectiva.
Na nossa última aula, falamos sobre a "câmera do autor". Hoje, vamos ajustar a lente mais importante de todas: o foco na consciência. A escolha do ponto de vista narrativo é, talvez, a decisão mais fundamental que você tomará. Ela define as regras do jogo com o leitor. O que ele pode saber? De quem ele pode saber? Quão perto ele chegará da verdade de uma personagem?
Muitos pensam nessa escolha como uma decisão binária: primeira ou terceira pessoa. Mas isso é apenas o começo. A verdadeira maestria está em controlar a distância psíquica — o espaço entre a voz que narra e a mente que sente.
Hoje, vamos mapear esse território. Em vez de apenas visitar os polos, vamos percorrer a escala completa da consciência narrativa, do narrador mais distante ao mais imerso, com três mestres como nossos guias.
Escala do Ponto de Vista Narrativo: 3 Estágios da Consciência Narrativa

Imagine o ponto de vista como o controle de zoom de uma câmera. Você pode filmar a cena de longe, como um observador neutro, pode se aproximar e caminhar ao lado do seu personagem, ou pode se tornar a própria retina dele. Vamos ver como isso funciona na prática.
Estágio 1: Distância Máxima – O Narrador-Câmera
No extremo da distância, temos o narrador que funciona como uma câmera de segurança. Ele registra tudo o que pode ser visto e ouvido, mas não tem acesso à mente de ninguém. É a objetividade em sua forma mais pura.
Dashiell Hammett foi um dos ícones de gênero policial hard-boiled noir e revolucionou a literatura policial nos anos 1920 e 1930. Ele transcendeu o rótulo de “autor de gênero” e entrou no cânone da literatura americana como um dos grandes cronistas da modernidade urbana e da ambiguidade moral do século XX. Chamou a atenção de público e crítica pela sua sofisticação narrativa, estilo enxuto e profundidade temática.
Em O Falcão Maltês, Hammett nos apresenta o detetive Sam Spade com o máximo afastamento: a Terceira Pessoa Objetiva. Seu ponto de vista narrativo nega ao leitor qualquer acesso aos pensamentos de Spade ou qualquer outro personagem. Hammett força o leitor a se tornar ele próprio um detetive, deduzindo o caráter e as intenções do protagonista unicamente por meio de suas ações e diálogos.
Observe neste trecho como cada frase é uma descrição de ação externa ou uma fala.
Spade foi até a porta, abriu-a e disse:
— Olá. Entre.
A moça que entrou era alta e bem-vestida. Ela se moveu com uma graça fluida. Seu queixo era pontudo, sua boca era vermelha, seus olhos eram azuis.
— Sente-se, por favor — disse Spade.
Ele fechou a porta e indicou uma cadeira. Ela sentou-se, colocou a bolsa no colo e olhou para ele.
— E então? — perguntou ele, sentando-se em frente a ela.
— O que posso fazer por você?
A prosa é fria, factual. Spade é uma superfície impenetrável. Nós o julgamos por seus atos, não por suas intenções confessadas. Esse distanciamento máximo cria um efeito de realismo brutal e convida à desconfiança, a marca registrada do gênero noir. Nenhuma palavra sobre o que ela sente, o que ele pensa, o que há por trás dos gestos. Embora pareça “neutro”, o texto cria tensão e atmosfera:
a descrição da mulher (graça, boca vermelha, olhar)
o comportamento de Spade (abre, convida, observa)
o ritmo das falas, seco, funcional
Tudo isso implica um subtexto — atração, cálculo, desconfiança — mas sem uma linha de psicologia explícita.O leitor sente a tensão pelos gestos, não pelos pensamentos. A objetividade não elimina o sentido — desloca-o para o não dito.
Estágio 2: A Distância Híbrida – O Narrador-Camaleão
Aqui está o "miolo", o vasto e sofisticado território intermediário. O narrador ainda fala em terceira pessoa, mas sua voz se mescla sutilmente com a consciência do personagem. Ele se torna um camaleão, adotando as cores dos pensamentos e sentimentos de quem observa. Nosso exemplo é de ícone inquestionável da literatura mundial: Gustave Flaubert. Embora autores como Jane Austen tenham usado formas embrionárias do discurso indireto livre (DIL), é Gustave Flaubert quem consolida e inaugura a técnica como um recurso literário consciente e estruturado. Ele não apenas emprega o estilo, mas o transforma em ferramenta estética e psicológica central à narrativa moderna e essencial para a literatura contemporânea.
Em Madame Bovary, Flaubert aperfeiçoou essa técnica para nos dar acesso à vida interior de Emma Bovary sem abandonar o controle e a ironia de seu narrador. O discurso indireto livre cria uma intimidade cúmplice, permitindo-nos sentir o que Emma sente, mesmo enquanto o narrador mantém uma distância crítica. O DIL é uma técnica de gradação contínua, em que o escritor pode “oscilar” entre níveis de imersão sem ruptura.
No trecho a seguir, durante um baile, observe como é impossível traçar uma linha clara entre o que o narrador descreve e o que Emma sente. A descrição é o sentimento dela.
A atmosfera do baile era pesada; as velas alongavam as suas chamas sobre os candelabros de prata. As peras em pirâmide amontoavam-se sobre os musgos e, em volta, viam-se pratos com frutas de todas as qualidades. Ela nunca tinha visto romãs, nem ananases. O pólen do açúcar parecia areia fina sobre a pele das frutas. Tudo em sua vida parecia escuro agora. Toda a amargura da sua existência pareceu-lhe servida ali, naquele prato, junto com o aroma da carne e o cheiro das trufas.
Destrinchando para você:
Estágio 3: Distância Zero – O Narrador-Consciência

No outro extremo da escala, a distância colapsa. O narrador desaparece e somos jogados diretamente dentro do fluxo de pensamento bruto e não filtrado de um personagem. Não lemos sobre a experiência; nós somos a experiência.
O Mestre convidado é William Faulkner e a técnica é Fluxo de Consciência. Ponto de Partida e Tese: Em O Som e a Fúria, Faulkner nos dá acesso à mente de Benjy, um homem incapaz de compreender a lógica do mundo. A tese é que a quebra da gramática, da lógica e do tempo não é um erro, mas a única forma autêntica de representar uma consciência que não percebe o mundo de forma linear.
Foco no Mecanismo: Veja como as memórias do passado (Caddy, sua irmã) e as sensações do presente se misturam sem qualquer aviso ou distinção.
Caddy cheirava como árvores. As cercas corriam. Tio Maury disse para não contar. A cerca parou e eu passei por ela. Caddy vai se casar, disse Versh. O riacho não estava lá. Eu podia sentir o frio, mas não conseguia ver o riacho. Fui eu que abri, disse Caddy. Fui eu que abri para você. Ela estava deitada na grama molhada, cheirando como árvores.
Não há um guia. Somos Benjy. Sentimos sua confusão, sua fixação em cheiros e sensações, sua incapacidade de separar o "antes" do "agora". Faulkner não nos descreve a mente de Benjy; ele nos entrega a própria mente, com toda a sua beleza e dor.
Reforço de Aprendizagem: Calibrando Sua Lente Narrativa
Narrador-Câmera (Hammett): Ideal para criar mistério, suspense e um tom de objetividade fria. Força o leitor a analisar as ações, não as emoções.
Narrador-Camaleão (Flaubert): Perfeito para criar empatia e intimidade sem perder o controle narrativo. Permite explorar a psicologia de um personagem com sutileza e ironia.
Narrador-Consciência (Faulkner): Uma ferramenta poderosa para criar uma imersão radical e subjetiva. Ideal para representar estados mentais extremos, sonhos ou a pura experiência sensorial.
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