Kafka: A Bofetada da Verdade: A Literatura Nunca Mais Foi a Mesma!
- Paulo André

- 12 de jun.
- 4 min de leitura

O Narrador Indiferente: O Truque de Kafka para Chocar (e Viciar) o Leitor
E aí, pessoal, tudo certo? Aqui é Ana Amélia, sua carrasca literária favorita. Hoje vamos falar de um pecado que muitos de vocês, aspirantes a Dostoievski de botequim, cometem sem nem piscar: o excesso de sentimento. Aquela necessidade de pegar o leitor pela mão e soletrar cada emoção: "ele ficou triste", "ela sentiu um medo avassalador", "o coração dele batia como um tambor frenético".
Parece bom, né? Parece profundo. Mas na verdade, muitas vezes, é só ruído. É tirar do leitor a chance de sentir por conta própria.
E se eu dissesse que um dos maiores mestres da angústia literária fazia exatamente o contrário? Ele não descrevia o pavor. Ele o construía com o silêncio, com a distância, com a faca fria da objetividade. Senhoras e senhores, vamos ao consultório do Dr. Franz Kafka.
Estudo de Caso: Uma Bicada nos Pés (e na Alma)
Antes de eu começar a teorizar, quero que vocês leiam uma coisinha. É um microconto de Kafka chamado "O Abutre". Leiam com atenção. Sem pressa. Sintam o desconforto se instalar.
Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava-me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina.
Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre.
– É que estou sem defesa – respondi. – Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados.
– Mas deixar-se torturar dessa maneira! – disse o senhor. – Basta um tiro e pronto!
– Acha que sim? – disse eu. – Quer o senhor disparar o tiro?
– Certamente – disse o senhor. – É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue aguentar meia hora?
– Não sei lhe dizer. – respondi. Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei: – De qualquer modo, vá, peço-lhe.
– Bem – disse o senhor. – Vou o mais depressa possível.
O abutre escutara tranquilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.
Ok. Respirem. Perturbador, não? Mas por quê?
A Dissecar o Cadáver: A Genialidade do Narrador Clínico
Percebam a jogada de mestre. Em nenhum momento o narrador diz "eu estava apavorado" ou "a dor era insuportável". Ele descreve a tortura com a mesma naturalidade com que descreveria a receita de um bolo. É quase um relatório de autópsia sendo feito no próprio corpo, em tempo real.
Essa é a técnica do narrador objetivo, ou como prefiro chamar, o narrador clínico. É uma voz que narra os eventos mais absurdos e grotescos de forma factual, fria e desapaixonada. E é justamente essa frieza que amplifica o horror.
O Poder da Indiferença
Ao se recusar a julgar ou a sentir pela personagem, o narrador de Kafka espelha a indiferença do próprio universo. Não há condenação do abutre, não há pena do homem. Há apenas o fato: uma criatura está sendo destruída por outra, e um terceiro oferece uma "solução" burocrática e inútil ("Consegue aguentar meia hora?"). A falta de consideração moral torna a cena ainda mais brutal. O absurdo não é um acidente; é a regra do jogo.
O Leitor como Cúmplice
Quando o texto não entrega a emoção de bandeja, ele cria um vácuo. E adivinhem quem é que preenche esse vácuo? Exatamente, você, o leitor. É você que projeta seu próprio medo, sua própria angústia e seu próprio pânico naquela cena. Kafka não te conta que a situação é desesperadora; ele cria um cenário tão objetivamente terrível que o desespero floresce dentro de você. É uma coparticipação no horror. Muito mais eficaz do que qualquer adjetivo, não acham?
Como Aplicar o "Efeito Kafka" no seu Texto (sem precisar de um abutre)
"Ok, Ana, entendi. Mas como eu uso isso?". Calma, não precisa transformar todos os seus contos em pesadelos existenciais. A técnica do narrador objetivo é uma ferramenta poderosa que pode ser usada com moderação para criar tensão e impacto.
Aqui vão algumas dicas:
Mostre, não Qualifique: Em vez de dizer que um personagem está "nervoso", descreva suas mãos tremendo ao tentar acender um cigarro, o suor na sua testa, o tique em seu olho. Deixe os fatos falarem.
Foque na Ação, não na Reação Interna: Narre o que acontece externamente, de forma precisa. Se um personagem recebe uma notícia terrível, em vez de mergulhar em seus pensamentos, descreva como ele lentamente coloca a xícara de café de volta no pires, com uma precisão que não condiz com a situação. O contraste é tudo.
Abrace a Amoralidade da Cena: Por um momento, suspenda o julgamento. Apenas narre os eventos como uma câmera de segurança, sem dizer o que é "certo" ou "errado". Deixe que a própria brutalidade (ou beleza, ou estranheza) da cena fale por si.
No fim, o que Kafka nos ensina é que a verdadeira força da escrita muitas vezes reside no que não é dito. É sobre confiar na inteligência e na sensibilidade do leitor. É sobre trocar o melodrama barato pelo poder sísmico de um fato bem narrado.
Agora vão lá e tentem escrever algo com um pouco mais de frieza e um pouco menos de choro. Vocês podem se surpreender com o resultado.


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