O Bisturi de Machado, a Frieza de Capote e o Pesadelo de Kafka: Um Guia Sobre Distância Narrativa
- Ana Amélia

- 29 de set.
- 5 min de leitura
Atualizado: 7 de out.

Olá, caros sobreviventes da página em branco. Ana Amélia na área.
Hoje, vamos falar de uma das ferramentas mais sofisticadas e, arrisco dizer, sádicas do arsenal de um escritor: a Distância Narrativa. Pense nela como o controle de zoom de uma câmera. O autor pode te colocar no colo do personagem, fazendo você sentir o cheiro do medo dele, ou pode te afastar quilômetros, mostrando a cena toda como um deus entediado que observa um formigueiro.
Essa escolha não é um capricho. É uma manipulação. E os mestres nisso? Ah, eles são cirurgiões da alma do leitor. Vamos colocar três deles na nossa mesa de autópsia.
1. A Distância Absoluta: O Defunto Autor de Machado de Assis
Ninguém foi mais longe que o nosso Bruxo do Cosme Velho. Para provar, basta a dedicatória de Memórias Póstumas de Brás Cubas:
AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES DO MEU CADÁVER DEDICO COMO SAUDOSA LEMBRANÇA ESTAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS.
O bisturi aqui é preciso. Machado não afasta o narrador por metros; ele o afasta pela morte. Brás Cubas nos conta sua vida medíocre do além-túmulo. Essa distância colossal, a maior possível, aniquila qualquer chance de sentimentalismo barato. Ele não precisa se justificar, não teme julgamentos, não busca sua simpatia. Ele está morto. Essa posição lhe confere uma liberdade e uma ironia cortantes. Ele pode rir das próprias feridas porque elas não doem mais. É a câmera posicionada na estratosfera, observando a comédia humana com um tédio divinamente sarcástico.
2. A Distância Clínica: A Câmera de Segurança de Truman Capote
Agora, vamos de um extremo a outro. Em A Sangue Frio, Capote inventou o "romance de não ficção". Ele não opina, não adjetiva, não chora. Ele apenas mostra. A câmera dele é a de uma sala de interrogatório, fria, impessoal. Veja este trecho da confissão de Perry Smith, agora com mais contexto, para sentirmos o gelo na espinha:
Não havia nada de errado com eles. Nunca me fizeram mal como outras pessoas me fizeram a vida inteira. Talvez fossem apenas as pessoas que teriam de pagar por tudo. [...] Eu não queria fazer mal àquele homem. Achei que era um senhor simpático. Que falava manso. E era assim que eu pensava até a hora em que cortei o pescoço dele. [...] esperei. E esperava que Dick fizesse o mesmo com a mulher. Mas ele não conseguia. Era um covarde de marca maior. Tive de falar com ele. Falei 'Vamos lá, Dick. Vamos'. Mas ele não se mexia. Apenas olhava fixamente para ela. Então eu disse 'Certo. Deixa que eu faço'. E fiz.
Vê a diferença? O trecho expandido torna a técnica ainda mais clara. A narração é uma transcrição de fatos. "Esperei." "Tive de falar com ele." "E fiz." Não há floreios, não há psicologismo barato, não há um narrador nos dizendo para sentir horror. Capote se afasta tanto que a narração adquire a objetividade de um laudo pericial. Essa distância clínica não diminui o horror; pelo contrário, ela o amplifica. Ao nos negar a catarse de um narrador que se indigna junto conosco, Capote nos obriga a encarar a brutalidade do fato em sua forma mais pura e indigesta. É a câmera no canto da sala, registrando o horror sem piscar.
3. A Distância do Absurdo: O Pesadelo de Franz Kafka
Se Machado está no céu e Capote está na sala de autópsias, Kafka está num pesadelo lúcido. A famosa primeira frase de A Metamorfose é apenas o gatilho. O verdadeiro poder da distância kafkiana está no que vem depois:
Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de 1vez, mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do corpo, tremulavam desamparadas diante de seus olhos. 'O que aconteceu comigo?', pensou. Não era um sonho.
Percebeu a manobra? Gregor não grita. Ele não entra em pânico existencial. Ele observa. A narração se detém nos detalhes físicos — a "couraça", o "ventre abaulado", as "pernas finas" — com uma curiosidade quase científica. A preocupação imediata dele é prática, quase burocrática: "O que aconteceu comigo?". Ele constata o fato, "Não era um sonho", como quem constata que está atrasado para o trabalho. Essa distância colossal entre o evento (a mais terrível desumanização) e a reação (uma análise fria e pragmática) é o que cria o efeito kafkiano. O horror não está na transformação em si, mas na aceitação passiva e na normalização do impossível. É um pesadelo contado com a calma de um burocrata.
Controlar a distância narrativa é saber que, às vezes, para mostrar a alma de um personagem, o melhor é dar um passo para trás.
Percebe como a distância é tudo? Aproximar ou afastar o leitor é uma decisão que define o tom, o gênero e o impacto de uma história. É uma técnica que, quando bem usada, transforma uma boa ideia numa obra de arte. Mas, para calibrar essa lente, para saber a hora exata do close-up ou do plano geral, é preciso um olhar de fora. Um olhar que enxergue não apenas o texto, mas a relação complexa que ele estabelece com quem lê. É exatamente essa a filosofia da nossa Revisão Dialogal: duas mentes experientes analisando a sua obra, não para impor regras, mas para encontrar a distância perfeita entre sua voz e o coração do seu leitor.
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