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Dom Casmurro vs. Bentinho: Dupla narração em Dom Casmurro.

  • Foto do escritor: Ana Amélia
    Ana Amélia
  • 23 de ago.
  • 5 min de leitura

Arte conceitual de uma máquina de escrever antiga produzindo um rolo de filme com memórias borradas, representando a memória falha do narrador.

E aí, aspirantes a demolidores de clássicos? Ana Amélia na área, pronta para mais uma sessão de autópsia literária. Hoje, vamos pegar o bisturi e abrir ao meio um dos nossos maiores tesouros nacionais, mas com um cuidado cirúrgico. Esqueça a pergunta que não quer calar. A questão não é "Capitu traiu ou não traiu?". A verdadeira pergunta, a que separa os escritores amadores dos estrategistas da palavra é: "Quem, diabos, está nos contando essa história?".

Pois é. Se você respondeu "Bentinho", acertou metade. Se respondeu "Dom Casmurro", também. A genialidade do Bruxo do Cosme Velho não foi criar um narrador, mas sim dois, aprisionados no mesmo corpo e em guerra declarada pela sua versão da verdade.


Desmascarando o Narrador: O Que Dom Casmurro e Os Vestígios do Dia Nos Ensinam Sobre a Memória


Vamos direto ao ponto: o Dom Casmurro que narra o livro não é o mesmo Bentinho que vive a história. Existe um abismo de décadas, mágoas e, principalmente, de interesses entre os dois. O livro se apresenta como um projeto de memória, uma tentativa do velho de "atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência". Uma premissa quase nobre, se não fosse uma completa falha, admitida por ele mesmo logo no início:

Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.

"Falto eu mesmo". Preste atenção nessa confissão. O narrador, o velho Dom Casmurro, nos diz com todas as letras que o protagonista da sua história—o jovem Bentinho—está ausente, é uma lacuna. Ele não está lembrando; ele está reconstruindo, e todo engenheiro sabe que uma reconstrução pode facilmente alterar a planta original para esconder rachaduras.

A narração é um ato de defesa. Dom Casmurro, o advogado, monta um processo meticuloso contra Capitu, Escobar e, indiretamente, contra a própria felicidade que ele perdeu. O jovem Bentinho é sua principal testemunha, mas uma testemunha que não tem voz própria. Suas memórias, suas dúvidas e seus ciúmes são todos filtrados, editados e apresentados pelo promotor Casmurro. Nós, leitores, somos o júri, e recebemos o caso já com as "provas" selecionadas a dedo.

Esse truque de dividir o "eu-narrador" do "eu-personagem" é uma das ferramentas mais sofisticadas para criar um narrador não confiável. O autor nos dá a ilusão de intimidade (afinal, é uma narração em primeira pessoa), enquanto nos manipula pelas costas. E se você acha que isso é exclusividade do nosso Machado, está redondamente enganado.



Imagem dividida comparando o mordomo de 'Os Vestígios do Dia' e o narrador de 'Dom Casmurro', ambos com reflexos distorcidos de seu passado.

Vamos cruzar o Atlântico e dar uma espiada em Os Vestígios do Dia, do prêmio Nobel Kazuo Ishiguro. O livro é narrado por Stevens, um mordomo inglês que, assim como Casmurro, decide revisitar seu passado durante uma viagem. Stevens passou a vida inteira servindo Lord Darlington, um aristocrata que flertou com o nazismo. O dilema de Stevens é tentar justificar uma vida de devoção a um homem moralmente questionável, ao mesmo tempo em que lida com o arrependimento de ter sacrificado um possível amor com a governanta, a Srta. Kenton.

A "dignidade" para Stevens é o que a promessa do seminário era para Bentinho: um ideal que justifica a anulação de si mesmo. Ele constrói uma narrativa onde sua abnegação e controle emocional são virtudes supremas, mas, nas entrelinhas, sua humanidade reprimida vaza. Veja como ele descreve o pilar de sua existência:

O grande mordomo é grande em virtude de sua capacidade de habitar seu papel profissional — e de habitá-lo até o fim. Não se deixa abalar por acontecimentos externos, por mais surpreendentes, alarmantes ou constrangedores que sejam. Veste seu profissionalismo como um cavalheiro decente veste seu terno: não permitirá que baderneiros ou circunstâncias o arranquem dele em público.

Stevens, o narrador, tenta nos convencer de que essa armadura profissional é uma marca de grandeza. No entanto, é essa mesma armadura que o impede de agir quando seu pai está morrendo em um quarto no andar de cima, ou quando a Srta. Kenton, em um ato de desespero e afeto, tenta provocá-lo. O Stevens que narra é o advogado de defesa de uma vida que, no fundo, ele suspeita ter sido um erro. A tragédia está no que ele não diz, nos silêncios, nas justificativas polidas que mal conseguem esconder um coração partido.

Tanto Casmurro quanto Stevens são homens que olham para trás e tentam construir um monumento sobre as ruínas de suas vidas. Casmurro constrói um mausoléu para seu amor perdido, culpando Capitu para não ter que encarar sua própria insegurança paralisante. Stevens ergue uma estátua à "dignidade", para não admitir que serviu a um propósito falho e perdeu sua única chance de felicidade.

A técnica é a mesma: um narrador no presente (velho, experiente, ferido) reconta a história de seu eu no passado (jovem, ingênuo, cheio de potencial) não como ela foi, mas como ele precisa que ela tenha sido para justificar quem ele se tornou.


Entender essa fratura narrativa é crucial. É aqui que a relação entre autor, texto e leitor, a santíssima trindade que tanto prezamos na Letra & Ato, se torna um jogo de alta tensão. Seu narrador não é apenas um porta-voz; ele é uma entidade com agenda, com medos e com o poder de distorcer todo o universo que você criou. Reconhecer isso no seu próprio texto é o primeiro passo para transformá-lo de um simples relato em uma obra de arte complexa e instigante.


Quer Escrever Bem? Leia e Leia e Leia...

📚A Estante de Ana: Reparação de Ian McEwan

Se a memória de Casmurro é um processo judicial e a de Stevens é um relatório profissional, a de Briony Tallis é uma arma de destruição em massa. Este livro é uma aula magna sobre as consequências catastróficas de uma narração equivocada e a tentativa de uma vida inteira para consertar um erro através da ficção. Leitura obrigatória para quem quer entender o poder e o perigo de contar uma história.

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☕ Um café e uma primeira conversa


Seu manuscrito, assim como a memória de Bentinho, tem duas versões: a que você viveu ao escrever e a que o leitor vai encontrar. Muitas vezes, um abismo separa as duas. Uma palavra mal colocada, uma motivação que fica subentendida apenas para você, um silêncio que soa como confissão. Essas são as "rachaduras" que podem comprometer a estrutura da sua obra.

Nosso trabalho na Letra & Ato não é apenas corrigir a gramática. É estabelecer um diálogo com seu texto, encontrar essas fissuras e entender a intenção por trás de cada escolha. Queremos ser o primeiro leitor crítico e parceiro da sua história, ajudando a garantir que a versão que chega ao mundo é exatamente a que você sonhou em contar.

Que tal nos enviar um trecho? Vamos tomar esse café e conversar sobre o potencial que vive nas entrelinhas da sua narrativa.


No final, toda escrita é uma tentativa de organizar o caos da memória; a revisão é o ato de garantir que você não se tornou o vilão da sua própria história.


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