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"3 Histórias" de J. Cheever

  • Foto do escritor: Letra & Ato Editorial
    Letra & Ato Editorial
  • 21 de jun.
  • 18 min de leitura

Atualizado: 18 de jul.

contos john cheever


Três histórias

 

 I


O assunto de hoje é a metafísica da obesidade e eu sou a barriga de um homem chamado Lawrence Farnsworth. Sou a cavidade de seu corpo situada entre o diafragma e a pélvis e contenho suas vísceras. Sei que você não vai acreditar em mim, mas, se pode aceitar um cri de coeur, por que não um cri de ventre? Tenho um papel tão grande na vida dele quanto qualquer outro órgão vital ou faculdade do intelecto e, apesar de eu não poder agir com independência, ele também vive, em seu ambiente, à mercê de forças tão díspares quanto o dinheiro ou a luz das estrelas. Nascemos no Meio-Oeste e ele foi educado em Chicago. Participou da equipe de atletismo (salto com vara) e depois da equipe de salto ornamental, dois esportes que tornaram minha existência arriscada e obscura. Não me descobri até que ele completasse os quarenta anos, quando minha presença foi apontada pelo médico e pelo alfaiate. Ele teimou em reconhecer meus direitos e por quase um ano continuou a usar roupas que me apertavam com força, causando-me muitas dores e desconforto. Minha única compensação é que eu podia abrir o fecho das calças dele quando bem entendesse.

Ouvi-o dizer muitas vezes que, depois de ter passado a primeira metade da vida correndo atrás de um mastro desgovernado, estava condenado agora a passar o resto da vida seguindo uma barriga tão independente e caprichosa quanto seus genitais. Estive, é claro, em posição de observar sua prática dos esportes carnais, mas acho que me privarei de descrever os milhares — ou milhões — de performances das quais participei. Apesar de ter uma reputação ligada a coisas nojentas, sou uma verdadeira visionária e gostaria de olhar além da ginástica envolvida e analisar suas consequências, que, pelo que ouço dizer, costumam ser arrebatadoras. Para ele, ao que parece, a vida erótica é um passaporte de entrada para o que há de verdadeiramente belo no mundo. Trepar no meio de uma tempestade — qualquer chuvinha serve — é a sua ideia de um relacionamento completo. Há registros de reclamações. Ouvi uma mulher dizer certa vez: “Será que um dia você vai entender que a vida é mais do que sexo e conexão com a natureza?”. Uma ocasião, quando ele teceu loas à beleza das estrelas, sua belle amie não conseguiu conter o riso. Meu conhecimento aberto do mundo é dependente da incidência limitada da nudez: quartos, chuveiros, praias, piscinas, rendez-vous e banhos de sol nas Antilhas. Passo o resto da minha vida sendo uma espécie de divisória entre as calças e a camisa dele.

Depois de ter se recusado a admitir minha existência por um ano ou mais, ele finalmente subiu o número das calças de 30 para 34. Quando alcancei trinta e quatro polegadas e estava me esforçando para chegar a trinta e seis, sua postura em relação à minha existência se tornou obsessiva. O contraste entre o que ele tinha sido, o que pretendia ser e o que havia se tornado começou a ficar sério. Quando as pessoas me cutucavam com o dedo e faziam piadas sobre a sua Janela de Sacada, seu riso forçado não era incapaz de encobrir a raiva que ele sentia. Parou de julgar os amigos pela esperteza ou inteligência e começou a julgá-los pela cintura. Por que X era tão seco, e por que Y, com uma pochete de pelo menos quarenta polegadas, estava satisfeito com aquele estado de coisas? Quando os amigos ficavam em pé, seu olhar se desviava rapidamente do sorriso para a porção intermediária do corpo deles. Fomos certa noite ao Yankee Stadium assistir a uma partida de beisebol. Ele havia começado a curtir o momento, até perceber que o jardineiro direito tinha umas boas trinta e seis polegadas de cintura. Os outros jardineiros e os defensores de base estavam razoavelmente bem, mas o arremessador — um homem mais velho — tinha uma protuberância inegável — e dois dos juízes — quando retiraram suas proteções — estavam em situação revoltante. O mesmo valia para o receptor. Quando ele se deu conta de que não estava mais assistindo a uma partida de beisebol — de que, por causa da minha influência, era incapaz de assistir a uma partida de beisebol —, nós fomos embora. Isso foi no topo da quarta entrada. Um ou dois dias mais tarde, ele deu início ao que seria um ano ou um ano e meio de inferno.

Começamos com uma dieta que priorizava água e ovos cozidos. Ele perdeu quatro quilos e meio em uma semana, mas só nos lugares errados, e, apesar de minha existência ter sido posta em risco, sobrevivi. A dieta desencadeou algum distúrbio metabólico que danificou seus dentes, e ele desistiu dela por sugestão do médico e se matriculou numa academia. Três vezes por semana, eu era torturada numa bicicleta ergométrica e numa máquina de remo, e em seguida sovada e espancada ruidosamente e com crueldade pelas mãos de um massagista. Depois ele comprou uma variedade de cintas e cuecões elásticos que tinham como objetivo me disfarçar ou me oprimir, mas, apesar de me causarem dores enormes, eles serviram apenas para desafiar minha invencibilidade. À noite, quando eram removidos, eu me reintegrava espaçosamente no mundo que tanto adoro. Pouco tempo depois, ele comprou um aparelho que garantia minha destruição. Era um calção de plástico dourado que podia ser inflado com uma bomba manual. A acidez das secreções que eu era obrigada a refinar me diziam o quanto aquilo era doloroso e ridículo para ele. Quando o calção estava inflado, ele lia um livro de instruções e realizava alguns exercícios. Essa era a pior dor já infligida a mim e, quando os exercícios acabavam, minhas diversas partes estavam retraídas e empedradas de uma forma tão anormal que nós passávamos a noite sem conseguir dormir.

A essa altura eu já tinha identificado dois fatos que garantiam minha sobrevivência. O primeiro era sua ojeriza aos exercícios solitários. Ele gostava bastante de jogos, mas não de ginástica. Toda manhã ia ao banheiro e tocava a ponta dos pés com as mãos dez vezes seguidas. Suas nádegas (é outra história) raspavam na pia e a testa roçava o assento do vaso sanitário. Pelas secreções que chegavam até mim, sei que essa experiência era espiritualmente demolidora. Tempos depois ele foi passar o verão no campo e começou a correr e a levantar pesos. Enquanto levantava pesos, aprendeu a contar em japonês e russo na esperança de conferir uma certa dignidade ao ato, mas não obteve sucesso. Tanto a corrida como o levantamento de pesos lhe causavam intenso constrangimento. O segundo elemento a meu favor era sua convicção de que levávamos uma vida frugal. “Eu realmente levo uma vida muito frugal”, ele costumava dizer. Se fosse verdade, a proeminência não seria uma opção para mim, mas não há, creio eu, nenhum restaurante de primeiro nível na Europa, Ásia, África e nas Ilhas Britânicas ao qual eu não tenha sido levada e posta à prova. Ele diz isso com frequência. Atracando-se com um prato de gafanhotos em Tóquio, ele deu umas batidinhas em mim e disse: “Dê o melhor de si, cara”. Enquanto ele continuar chamando isso de uma vida frugal, meu lugar no mundo está garantido. Quando o deixo na mão, não é por malícia nem por intenção minha. Depois de um jantar homérico com catorze pratos principais no sul da Rússia, passamos a noite juntos no banheiro. Foi em Tbilisi. Aparentemente, eu estava ameaçando a vida dele. Eram três da manhã. Ele chorava de dor. As lágrimas caíam, e creio que eu, de todas as partes do seu corpo, sou a que conhece melhor a verdadeira solidão desse homem. “Vá embora”, ele gritava para mim, “vá embora.” O que poderia ser mais lamentável e absurdo do que um homem nu mandando embora os órgãos vitais num país estranho a altas horas da madrugada? Fomos até a janela escutar o vento nas árvores. “Oh, eu devia ter prestado mais atenção nas coisas do espírito”, ele gritou.

Se eu fosse a barriga de um agente secreto ou de um príncipe governante, meu papel no conflito do tempo não teria sido diferente. Represento o tempo de forma mais acabada do que um espantalho com uma foice. Por que uma força tão banal como o tempo — marcada com precisão pelos relógios da casa — era capaz de arrancar dele gemidos e palavrões? Será que ele achava que a juventude fugidia era o seu principal ou único atrativo? Sei que eu o fazia lembrar do relacionamento sofrido que teve com o pai. Seu pai se aposentou aos cinquenta e cinco anos e passou o resto da vida polindo pedras, cuidando do jardim e tentando aprender francês instrumental com o auxílio de fitas. Tinha sido um homem flexível e atlético, mas, assim como o filho, foi surpreendido no meio do caminho por um abdômen independente. Parecia, como o filho, não ter a capacidade de envelhecer e engordar com elegância. Sua pança, seu abdômen, estraçalhava o seu espírito. O abdômen o forçou a se curvar, a andar torto, a suspirar e a usar calças de número maior. O abdômen era como um precursor do Anjo da Morte, e talvez Farnsworth estivesse brigando com o mesmo anjo ao tocar a ponta dos pés no banheiro todas as manhãs.

Chegou então o ano das viagens. Não sei o que o motivou, mas demos a volta ao mundo três vezes em doze meses. Talvez ele tenha pensado que as viagens iam acelerar o metabolismo e diminuir minha importância. Não perderei tempo com as dificuldades envolvendo cintos de segurança e uma rotina alimentar caótica. Fomos a todos os lugares de sempre, e também a Nairóbi, Madagascar, Ilhas Maurício, Bali, Nova Guiné,

Nova Caledônia e Nova Zelândia. Visitamos Madang, Goroka, Lee, Rabaul, Fiji, Reykjavik, Thingvellir, Akureyri, Narsarsuaq, Kagsiarauk, Bukhara, Irkutsk, Ulan Bator e o deserto de Gobi. Depois vieram as Ilhas Galápagos, a Patagônia, a selva de Mato Grosso e, é claro, as Ilhas Seychelles e as Ilhas Amirante.

Tudo terminou ou se decidiu certa noite no Passetto’s. Ele iniciou a refeição com peixe e presunto de Parma acompanhados de dois pãezinhos com manteiga. Depois comeu espaguete à carbonara, um filé com fritas, uma porção de pernas de rã, um robalo inteiro assado no papel, alguns peitos de frango, uma salada com molho de azeite, três tipos de queijo e um zabaione bem servido. No meio da refeição, precisou me fornecer um pouco mais de espaço, mas não houve rancor e pressenti que a vitória estava próxima. Quando ele pediu o zabaione, eu soube que tinha vencido, ou que havíamos chegado a uma trégua amistosa. Ele já não estava tentando me esconder, me repudiar ou me esquecer, e suas secreções tinham se suavizado. Teve que me conceder mais duas polegadas de espaço depois de levantar da mesa, e agora, caminhando pela piazza, eu conseguia sentir a brisa noturna e escutar as fontes, e vivemos felizes juntos desde então.

 

 

II

 

Marge Littleton, nos idos tempos do jargão freudiano, teria sido taxada de maternal, embora ela não fosse mais maternal do que eu ou você. O que estava por trás disso era a suavidade encantadora da sua voz e de seus gestos e sua fragrância de verão, ou talvez seja o cheiro do verão que lembre o de uma mulher como ela, não o contrário. Ela ia à igreja regularmente e sempre senti que sua devoção era mais profunda que a da maioria, embora seja impossível especular sobre uma coisa tão íntima. Adepta da liturgia, conformava-se com o Livro da Oração Comum e sempre que possível evitava os sermões. Não era nativa, é claro — o último nativo morreu junto com a última vaca vinte anos atrás —, e não me lembro de onde surgiram ela nem o marido. Ele era careca. Tinham três filhos e levavam uma vida rigorosamente convencional até uma certa manhã de outono.

Foi depois do Dia do Trabalho, ventava um pouco. Dava para ver as folhas caindo do outro lado das janelas. A família tomou o café da manhã na cozinha. Marge tinha assado um pão de milho. “Bom dia, sra. Littleton”, disse o marido, dando um beijo na sua testa e uma palmadinha em seu traseiro. A voz e o gesto dele pareciam conter o equilíbrio perfeito do amor. Não sei o que um crítico virulento da família diria dessa cena. Será que os Littleton, ao moldar suas paixões de acordo com uma imagem social aceitável, estavam construindo uma espécie de prisão para si mesmos, ou será que tiveram a sorte de ser um homem e uma mulher que nutriam um pelo outro um afeto sensível, robusto e invencível? Até onde sei, era um casamento excepcional. Como eu mesmo nunca fui casado, posso estar sendo indevidamente suscetível ao componente de bufonaria presente no matrimônio sagrado, mas não é verdade que, ao comemorar o décimo ou décimo quinto aniversário de casamento, um casal parece tudo, menos triunfante? Na verdade, é como se eles tivessem sido enganados, enquanto o sacana do tio Harry, o devasso, é quem recebe todos os louros. Mas, no caso dos Littleton, tinha-se a impressão de que eles poderiam seguir vivendo juntos com entusiasmo e inteligência — dando e recebendo até que a morte os separasse.

Naquela manhã de sábado em particular, o plano dele era ir às compras. Depois do café da manhã, fez uma lista do que necessitavam da loja de ferragens. Uma lata de tinta acrílica branca, um pincel de quatro polegadas, ganchos para pendurar quadros, um rastelo e óleo para o cortador de grama. As crianças foram junto com ele. Não foram ao vilarejo, que estava definhando como todos os outros, e sim ao centro de compras lotado e um tanto festivo que ficava na rota 64. Deu dinheiro aos filhos para que comprassem uma Coca. Na volta, o tráfego no sentido sul estava pesado. Como eu disse, isso foi logo após o Dia do Trabalho e muitos carros estavam rebocando casas portáteis, reboques, barcos à vela, lanchas e trailers. Essa longa procissão de veículos e reboques domésticos não lembrava o espetáculo de um povo retornando de férias, e sim algo como a evacuação trágica de uma grande cidade ou de um estado. Uma cegonha tentou ultrapassar um motor home mais largo que o usual, bateu de frente no carro dos Littleton e os matou. Não fui ao enterro, mas um de nossos vizinhos o descreveu para mim. “Ela ficou ali parada na beira da cova. Não chorou. Estava muito bonita e serena. Precisou ver quatro caixões descendo no buraco, um após o outro. Quatro.”

Ela não foi embora. As pessoas a convidavam para jantar, é claro, mas numa comunidade tão doméstica é inevitável que os solteiros acabem sendo deixados de lado. Cerca de um mês após o acidente, o jornal local anunciou que a Comissão de Estradas Estaduais duplicaria as pistas da rota 64, de quatro para oito. Organizamos um comitê pela preservação da comunidade e coletamos dez mil dólares para as despesas legais. Marge Littleton participou bastante. Nós nos reuníamos quase toda semana. Os encontros aconteciam em casas paroquiais, tribunais, colégios e lares. No começo, esses encontros foram muito emotivos. A sra. Pinkham chorou num deles. Lavou-se em lágrimas. “Levei dezesseis anos para construir meu quarto pink e agora querem derrubá-lo.” Foi levada embora da reunião, uma mulher realmente devastada. Fretamos um ônibus e fomos à capital. Marchamos pela 64 num domingo chuvoso, com motos fazendo a escolta. Acho que éramos menos de trinta e acabamos nos dispersando. Carregamos placas de protesto. Lembro de Marge. Algumas pessoas nascem com um dom congênito para o protesto e com talento para carregar placas, mas Marge não era dessas. Ela carregou uma placa enorme que dizia: ABAIXO A ROTA DA GASOLINA. Parecia muito constrangida.

Quando a marcha se desfez, me despedi dela no morrinho que fica ao lado da estrada. Lembro de seu olhar inabalável, fixo no tráfego, talvez comparável ao de uma viúva de Nantucket contemplando o mar.

Quando já tínhamos gastado nossos dez mil dólares sem resultado, nossas reuniões passaram a ser cada vez menos frequentes e pouco prestigiadas. Só três pessoas apareceram na última, incluindo o orador. A estrada foi duplicada, o que levou à demolição de seis casas e tornou outras duas inabitáveis, apesar de os proprietários não terem recebido indenizações. Vários poços foram destruídos pelas detonações. Depois que o comitê se desmanchou, Marge quase desapareceu. Alguém me disse que ela viajara para o exterior. Quando voltou, veio acompanhada de um simpático jovem romano chamado Pietro Montani. Tinham se casado.

Marge exibiu seu talento para a felicidade conjugal com Pietro, embora ele fosse bem diferente do primeiro marido. Era bonito, espirituoso e bem de vida — representava uma empresa fabricante de palmilhas —, mas falava o pior inglês que eu já tinha escutado. Era possível falar com ele, beber com ele e rir com ele, mas ao mesmo tempo era quase impossível se comunicar com ele. No fundo isso não importava. Ela parecia muito feliz e era agradável visitá-los em casa. Estavam casados fazia menos de dois meses quando Pietro, ao dirigir seu conversível pela 64, foi decapitado por um guindaste.

Ela enterrou Pietro junto com os outros, mas permaneceu em sua casa na Twin-Rock Road, de onde se podiam ouvir os ruídos de guerra do tráfego industrial. Acho que arranjou um emprego. Era vista nos trens. Três semanas após a morte de Pietro, uma jamanta de vinte e quatro rodas e oitenta toneladas, seguindo no sentido norte pela rota 64 por razões nunca averiguadas, invadiu a pista contrária e arrebentou dois carros, matando seus quatro passageiros. Depois o caminhão se chocou contra uma barreira de granito, tombou de lado e pegou fogo. A polícia e o corpo de bombeiros chegaram imediatamente ao local, mas a carga era inflamável e o incêndio só foi controlado às três da manhã. Todo o tráfego da rota 64 foi desviado. O efetivo feminino dos bombeiros ficou servindo café.

Duas semanas depois, às oito horas da noite, outra jamanta de vinte e quatro rodas com uma carga de blocos de cimento perdeu o controle no mesmo local, invadiu a pista de sentido sul e derrubou quatro árvores altas antes de colidir com a barreira. O impacto da batida foi tão forte que meio metro de granito foi arrancado do muro. Não houve incêndio, mas os dois motoristas foram esmagados de tal forma pela colisão que precisaram ser identificados pela arcada dentária.

No dia 3 de novembro, às oito e meia da noite, o tenente Dominic DeSisto relatou que um homem vestindo uniforme de trabalho invadiu o escritório principal da delegacia. Parecia histérico, drogado ou bêbado e alegava ter sido baleado. Estava tão incoerente, de acordo com o tenente DeSisto, que levou um bom tempo até conseguir explicar o que tinha acontecido. Estava dirigindo no sentido norte pela 64, mais ou menos na mesma altura em que os outros caminhões haviam perdido o controle, quando um projétil de rifle atravessou a janela esquerda da cabine, errou o motorista e saiu pela janela direita. A vítima potencial era Joe Langston, de Baldwin, Carolina do Sul. O tenente examinou o caminhão e verificou as janelas quebradas. Ele e Langston foram numa viatura até o local de onde viera o disparo. No lado direito da estrada, havia um pequeno morro de granito com alguns trechos de solo. Durante a duplicação da estrada, o morro fora dinamitado ao meio e o morrinho à direita correspondia à barreira que tinha matado os demais motoristas. DeSisto examinou a encosta. A grama no morro estava amassada e havia duas bitucas de cigarro no chão. Langston foi levado ao hospital em estado de choque. A colina foi mantida sob vigilância durante um mês, mas faltava efetivo à polícia e era uma chatice ficar sentado sozinho na encosta desde o entardecer até a meia-noite. Assim que a vigilância foi retirada, um quarto caminhão perdeu o controle. Dessa vez o caminhão se desviou para a direita, derrubou uma dúzia de árvores e caiu num vale estreito e íngreme. Quando a polícia chegou até o motorista, ele já estava morto. Tinha levado um tiro.

Em dezembro, Marge casou com um viúvo rico e se mudou para North Salem, onde há somente uma via de pista única e o som do tráfego é suave como o zunido de um projétil.

 

 

III

 

Instalou-se no assento do corredor — 32 — no 707 com destino a Roma. O avião não chegava a estar lotado e havia um assento vago entre ele e a ocupante do assento da janela. Viu com satisfação que se tratava de uma mulher extremamente bonita — ela não era jovem, mas ele também não. Estava usando perfume, um vestido escuro e joias, e parecia pertencer àquela parte do mundo onde ele se movia com mais naturalidade. “Boa noite”, ele disse, acomodando-se. Ela não respondeu. Soltou um grunhido desencorajador e abriu um livro de bolso diante do rosto. Ele tentou conferir o título, mas ela o cobriu com a mão. Não era a primeira vez que ele encontrava uma mulher tímida num avião — não era comum, mas já acontecera. Imaginava que elas tinham aprendido a cultivar uma cautela compreensível contra bêbados, conquistadores e chatos. Sacou seu exemplar do The Manchester Guardian. Havia notado que os jornais conservadores às vezes inspiravam um pouco de segurança às tímidas. Quando lia os editoriais, a página de esportes e, principalmente, a seção de economia, às vezes uma tímida desconhecida se mostrava disposta a uma conversa. O avião decolou, o aviso de proibido fumar foi desligado e ele pegou uma cigarreira dourada e um isqueiro dourado. Não eram chamativos, mas eram dourados. “Se importa se eu fumar?”, perguntou. “Por que me importaria?”, ela respondeu. Ela não olhou na sua direção. “Algumas pessoas se importam”, ele disse, acendendo o cigarro. Ela era quase tão bonita quanto hostil, mas por que precisava ser tão fria? Ficariam lado a lado durante nove horas e era mais que sensato dispor-se a um mínimo de conversa. Será que ele a fazia lembrar de alguém desagradável, alguém que a magoara? Estava de banho tomado, barbeado, corretamente vestido e acostumado a fazer amizades. Ela podia ser uma mulher infeliz que não aturava o mundo, mas, quando a aeromoça veio oferecer uma bebida, o sorriso que abriu para a jovem desconhecida foi ofuscante e generoso. Isso o animou a tal ponto que ele próprio sorriu, mas, quando ela percebeu que ele tinha se intrometido numa comunicação direcionada a outrem, voltou-se para ele, fez uma cara feia e retornou ao seu livro. A aeromoça trouxe um martíni duplo para ele e um xerez para a sua vizinha. Ocorreu-lhe que a bebida forte poderia agravar ainda mais o desconforto dela, mas era um risco a correr. Ela continuou lendo. Se ao menos pudesse descobrir qual era o título do livro, pensou, conseguiria dar o primeiro passo. Harold Robbins, Dostoiévski, Philip Roth, Emily Dickinson — qualquer coisa ajudaria. “Posso perguntar o que está lendo?”, perguntou educadamente. “Não”, ela disse.

Quando a aeromoça trouxe os jantares, ele passou a bandeja dela por cima do assento vazio. Ela não agradeceu. Ele se acomodou para comer, para se alimentar, para desfrutar esse hábito simples. A comida estava atipicamente ruim e ele enunciou essa opinião. “Não se pode exigir demais nessas circunstâncias”, ela disse. Ele pensou ter ouvido um traço de cordialidade na sua voz. “Talvez o sal ajude”, ela disse, “mas não me deram sal nenhum. Se incomoda de me dar o seu?” “Oh, com certeza”, ele disse. As coisas estavam definitivamente melhorando. Ele abriu o pacotinho de sal e, ao estendê-lo na direção dela, deixou cair um pouco no carpete. “Sinto dizer que a má sorte será toda sua”, ela disse. Não havia humor nenhum no tom da frase. Ela salgou o pedaço de carne e comeu tudo que veio na bandeja. Depois continuou lendo o livro com o título escondido. Ele sabia que cedo ou tarde ela precisaria ir ao banheiro, e então ele teria a oportunidade de checar o título do livro, mas, quando chegou a hora, ela levou o livro junto ao toalete.

A tela do filme foi baixada. A não ser quando o filme era excepcionalmente interessante, ele nunca alugava o equipamento de áudio. Descobrira que a leitura labial e o jogo de adivinhação acrescentavam uma dimensão ao filme, e de qualquer modo os diálogos costumavam ser ofensivamente banais. Sua vizinha alugou o equipamento e deu sinais de estar se divertindo para valer. Tinha uma risada melodiosa e encantadora e interagia com os atores na tela da mesma maneira que havia interagido com a aeromoça e da mesma maneira que se recusava a interagir com seu companheiro de assento. O sol nasceu quando estavam se aproximando dos Alpes, embora o filme ainda não tivesse acabado. Aqui e ali, o brilho da manhã alpina podia ser visto por entre as fendas da cortina fechada, mas, enquanto eles navegavam no ar sobre o Mont Blanc e o Matterhorn, os personagens na tela continuavam seguindo o roteiro. Houve um desfile, uma perseguição, uma reconciliação e um final. Sua companheira, de novo carregando o livro misterioso, retirou-se mais uma vez para o toalete e voltou com uma espécie de touca de dormir na cabeça e o rosto coberto por uma grossa camada de unguento branco. Arrumou o travesseiro e o cobertor e se preparou para dormir. “Bons sonhos”, ele ousou dizer. Ela suspirou.

Nunca dormia em aviões. Foi à cozinha e pediu um uísque. A aeromoça era bonita e conversadora e falou sobre suas origens, sua escala de trabalho, seu noivo e seus problemas com passageiros que tinham medo de voar. Passando dos Alpes, começaram a descer e ele espiou o Mediterrâneo pela janelinha e pediu outro uísque. Avistou Elba, Giglio e os iates na enseada de Porto Ercole, onde era possível enxergar as villas de seus amigos. Lembrava-se da sua chegada a Nantucket, tantos anos antes. As pessoas costumavam se alinhar na amurada e gritar: “Oh, os Perry estão aqui, e os Salton e os Greenough”. Era parte verdadeiro, parte exibição. Quando ele voltou ao seu assento, a companheira tinha removido a touca e o unguento. Na luz matinal, sua beleza era intensa. Ele não conseguia diagnosticar o que tanto o cativava — uma nostalgia, talvez —, mas os traços dela, a alvura da pele, a posição dos olhos, tudo correspondia ao seu ideal de beleza. “Bom dia”, ele disse, “dormiu bem?” Ela fechou a cara, parecendo achar a pergunta impertinente. “E alguém dorme?”, perguntou elevando o tom. Colocou o livro misterioso dentro de uma bolsa com zíper e juntou suas coisas. Quando pousaram em Fiumicino, ele cedeu a passagem e a seguiu pelo corredor. Passou logo atrás dela no guichê de passaporte, na imigração e no posto sanitário e depois a encontrou no lugar onde se pega a bagagem.

Mas olha só, olha só. Por que ele aponta a mala dela ao carregador e por que, quando já estão ambos de posse de suas bagagens, ele a segue até o ponto de táxi e pechincha com o motorista o preço da corrida até Roma? Por que ele entra com ela no táxi? Ele é o conquistador obstinado que ela tanto abomina? Não, não. Ele é o marido dela, ela é a sua esposa, a mãe de seus filhos, uma mulher que ele venera com paixão há quase trinta anos.

 

 

Trad. Daniel Galera



Luz e Sobra na Obra de John Cheever


Sua obra mergulha nas profundezas da vida americana de meados do século XX, explorando a aridez espiritual e, paradoxalmente, a possibilidade de transcendência em uma sociedade marcada pela alienação. Os melhores contos de Cheever, enraizados na realidade, funcionam como críticas implacáveis ao vazio existencial de seus personagens, condenados a vidas anódinas. No entanto, em momentos de ruptura lírica do realismo, Cheever abre espaço para epifanias, sugerindo que a existência não se resume apenas a um isolamento sem sentido. O amor, as relações familiares e a natureza, transfigurados pela arte, tornam-se fontes de deslumbramento e significado.


Apesar da busca constante pela "luz e brilho" em sua ficção, a publicação póstuma de "Home Before Dark" revelou o lado mais sombrio de Cheever, expondo seu homossexualismo e alcoolismo. Essa revelação causou perplexidade em muitos que admiravam o artista, confrontando a imagem pública com uma personalidade dolorosamente complexa. Contudo, essa exposição apenas ressalta a profundidade e a humanidade crua que permeiam a obra de Cheever, tornando-o um autor ainda mais fascinante e relevante.

John Cheever nasceu em 27 de maio de 1912 e faleceu em 18 de junho de 1982.


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