top of page

O Narrador Erudito Morreu? Como as Vanguardas Chutaram a Porta da Narrativa!

  • Foto do escritor: Paulo André
    Paulo André
  • 12 de jun.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 18 de jul.


Perda da Autoridade Narrativa
Santa Muerte, figura sagrada e venerada no México.

A Perda da Autoridade Narrativa nos Movimentos Vanguardistas do Início do Século XX


A literatura contemporânea, em grande parte, abraçou a ideia de que o sentido é construído, negociado e, muitas vezes, inatingível, refletindo a complexidade do mundo e o cenário de incertezas às quais estamos submetidos na atualidade.


Essa perspectiva de sentido descentralizado e multifacetado não é um fenômeno exclusivo da contemporaneidade, mas sim o ápice de um processo iniciado e acelerado pelos movimentos vanguardistas do início do século XX. Antes das vanguardas, a narrativa literária era frequentemente caracterizada por uma voz autoritária, um narrador onisciente que detinha o controle sobre a verdade e a interpretação dos eventos. A estrutura linear e a busca por uma clareza de propósito eram premissas básicas, ancoradas na crença de que a realidade poderia ser compreendida e representada de forma objetiva.


No entanto, o choque cultural e social provocado pelas duas Guerras Mundiais, os avanços tecnológicos e as revoluções científicas (como a teoria da relatividade e a psicanálise) abalaram profundamente essa confiança na objetividade e na razão. A percepção de um universo ordenado e previsível deu lugar a um cenário de fragmentação, ambiguidade e questionamento. É nesse contexto de efervescência e desilusão que surgem as vanguardas artísticas – o Cubismo, o Futurismo, o Surrealismo, o Dadaísmo, entre outros.


Esses movimentos, cada um à sua maneira, desafiaram as convenções estéticas e narrativas estabelecidas. O Cubismo, por exemplo, fragmentou a representação visual, sugerindo múltiplas perspectivas simultâneas e minando a ideia de um ponto de vista único e privilegiado. O Futurismo glorificou a velocidade e a máquina, desprezando o passado e buscando uma nova linguagem que expressasse a modernidade. O Surrealismo, influenciado pela psicanálise freudiana, explorou o inconsciente e o sonho, desorganizando a lógica e a linearidade da narrativa em favor de associações livres e imagens irracionais. Já o Dadaísmo, com sua postura niilista e anárquica, questionou a própria noção de arte e sentido, utilizando o acaso e o absurdo como ferramentas.


Em conjunto, as vanguardas diluíram a figura do narrador tradicional. A voz que antes guiava o leitor de forma inequívoca começou a se fragmentar, a se mesclar com outras vozes, a se tornar menos confiável ou mesmo a desaparecer. A linearidade cronológica foi subvertida, dando lugar a saltos temporais, narrativas não sequenciais e múltiplas linhas narrativas que se entrelaçavam ou se contradiziam. A ambiguidade tornou-se uma ferramenta estilística, convidando o leitor a participar ativamente da construção do sentido, em vez de apenas recebê-lo de forma passiva.


Essa perda da autoridade narrativa não foi um empobrecimento, mas sim uma libertação. Ela abriu caminho para a experimentação formal, para a representação de realidades mais complexas e para a exploração de múltiplas subjetividades. A literatura deixou de ser um espelho da realidade para se tornar um espaço de questionamento, de reflexão sobre a própria linguagem e sobre a impossibilidade de se apreender o mundo de forma unívoca. A partir das vanguardas, o sentido na literatura passou a ser um horizonte em constante deslocamento, um convite à interpretação e ao diálogo, e não mais uma verdade imposta.


15 Autores que Desconstruiram Autoridade Narrativa



Ernest Hemingway: 


Hemingway é um dos maiores expoentes dessa desconstrução, especialmente através de sua técnica do iceberg (ou teoria da omissão). Ele deliberadamente omite informações, deixando o leitor preencher as lacunas e inferir significados. Não há um narrador onisciente explicando tudo; o leitor é convidado a observar e tirar suas próprias conclusões. A autoridade não vem de explicações explícitas, mas da precisão e concisão do que é dito, sugerindo um vasto universo não dito por trás.


Mário de Andrade (Modernismo Brasileiro)


 Em obras como "Macunaíma", Mário rompe com a linearidade, a lógica e a erudição formal. A linguagem é coloquial, há uma mistura de mitos, lendas e o cotidiano, e o narrador se permite digressionar e até zombar das convenções. A autoridade é descentralizada, e a "erudição" é substituída por uma celebração da cultura popular e da "macunaímice" brasileira.


Oswald de Andrade (Modernismo Brasileiro)


 Oswald vai ainda mais longe com sua "Antropofagia" e sua poesia e prosa telegráficas. Ele demoliu a sintaxe tradicional, o "bom português" e qualquer pretensão de erudição formal. Seus textos são fragmentados, irônicos e exigem um leitor ativo para conectar os pontos. A autoridade é pulverizada, dando lugar a uma experimentação radical.7


Clarice Lispector


Uma das maiores representantes dessa linha. Clarice abandona completamente a narrativa linear e a autoridade do narrador que "explica" o mundo. Sua prosa é focada na experiência interior, no fluxo de consciência, no mistério da existência. As perguntas são mais importantes que as respostas. O leitor é jogado na subjetividade dos personagens, confrontado com a ambiguidade e a inefabilidade do ser. Não há erudição explícita; a "autoridade" (se é que existe) reside na profundidade e na honestidade da exploração da alma.


Lygia Fagundes Telles


Embora talvez menos radical que Clarice em termos de forma, Lygia explora as complexidades psicológicas, as falhas de comunicação e os mistérios nas relações humanas. Seus narradores muitas vezes são observadores ou partícipes de situações que não compreendem totalmente, ou cujos significados são velados. Ela não entrega a verdade, mas explora as camadas de percepção e as ambiguidades da realidade


Samuel Beckett 


O expoente máximo do Teatro do Absurdo e da literatura existencialista que desmantelou a narrativa tradicional. Em obras como "Esperando Godot", o enredo é mínimo, a comunicação é falha, e o sentido é elusivo. Não há autoridade narrativa que explique "Godot" ou o propósito da existência. O leitor/espectador é confrontado diretamente com o vazio, a repetição e a falta de significado. É a desconstrução levada ao extremo.


J.M. Coetzee


Coetzee é mestre em narrativas que questionam a verdade, a moralidade e a própria capacidade da linguagem de representar a realidade. Seus narradores são frequentemente ambíguos, não confiáveis ou estão imersos em situações onde as respostas claras são impossíveis. Ele não oferece "lições" ou verdades universais, mas explora as zonas cinzentas da condição humana, forçando o leitor a confrontar o desconforto da incerteza.


Italo Calvino: 


Sua obra é um laboratório de experimentação narrativa que desafia a autoridade tradicional.

Em "Se um Viajante Numa Noite de Inverno", a própria estrutura do romance se desfaz e se reconstrói, com diferentes inícios de livros, e o leitor é o protagonista. A autoridade é transferida para o leitor, que precisa montar o quebra-cabeça.

Sua temática do absurdo e do fantástico, frequentemente apresentada com uma lógica interna kafkaniana, mas sem a angústia opressora, também quebra a expectativa de um mundo racionalmente explicado. Ele brinca com as convenções narrativas e convida o leitor a um jogo intelectual.


Raymond Chandler e Dashiell Hammett (Noir/Romance Policial): 


Eles deram "nova vida" ao romance policial precisamente por esse motivo:


Detetive Privado e Ponto de Vista Limitado: Ao contrário dos detetives clássicos à la Sherlock Holmes, que tudo deduzem e explicam, os detetives de Chandler (Philip Marlowe) e Hammett (Sam Spade) são limitados em seu conhecimento. Eles não são oniscientes. Muitas vezes são espancados, enganados e só descobrem a verdade (se é que a descobrem completamente) através de muito esforço e observação.


Ambiguidade Moral e Ausência de Respostas Fáceis: O mundo que eles retratam é corrupto e moralmente ambíguo. As respostas não são claras, e a justiça nem sempre prevalece de forma satisfatória. Não há uma autoridade narrativa que forneça um "mapa moral" claro. O leitor é imerso na sujeira e na complexidade do mundo, sem a garantia de um desfecho limpo ou uma explicação total. Isso, de fato, é uma forma de desconstrução da autoridade e erudição que antes "organizava" o caos.


5 Autores Contemporâneos que Escrevem em Português (e Desconstroem a Autoridade Narrativa)


Valter Hugo Mãe (Portugal)


Sua prosa é frequentemente minimalista e poética, mas ao mesmo tempo densa em significado. Ele constrói mundos que são ao mesmo tempo realistas e oníricos, onde a voz narrativa se funde com a percepção dos personagens, e a "verdade" dos fatos é menos importante que a experiência sensorial e emocional. A autoridade não está no narrador que "explica", mas na imersão em uma atmosfera e na exploração da condição humana.


António Lobo Antunes (Portugal)


Considerado um dos maiores escritores da língua portuguesa, Lobo Antunes é mestre na fragmentação narrativa, no fluxo de consciência e na multiplicidade de vozes. Sua prosa é densa, não linear, e a autoridade sobre o que "realmente aconteceu" é frequentemente dissolvida em memórias contraditórias, delírios e perspectivas subjetivas. O leitor precisa reconstruir o sentido a partir de fragmentos, muitas vezes sem uma conclusão clara.


Tatiana Salem Levy (Brasil)


Autora que explora a memória, o exílio, a identidade e as relações humanas de forma fluida e não linear. Seus narradores frequentemente questionam a própria capacidade de narrar e de compreender os eventos, e a verdade é apresentada como algo multifacetado e elusivo. Há uma constante busca por sentido que raramente é finalizada por uma voz autoritária.


João Paulo Cuenca (Brasil)


Cuenca frequentemente brinca com as fronteiras entre ficção e realidade, utilizando metalinguagem e experimentação formal. Em obras como "O Único Final Possível para Felix Fischer", ele questiona a autoria, a veracidade da narrativa e a própria existência do escritor e do personagem. A autoridade do autor como "criador de um mundo fechado" é constantemente desestabilizada.


Luiz Ruffato (Brasil) 


Especialmente em sua pentalogia "Inferno Provisório", Ruffato utiliza uma prosa fragmentada, com múltiplos pontos de vista, recortes de jornais, depoimentos e uma linguagem que mimetiza o fluxo da vida urbana e das vozes populares. Não há um narrador onisciente que organize e explique o caos social, mas sim uma colagem de vozes que desafia o leitor a construir sua própria compreensão da realidade brasileira.

Comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação

Não perca o fio da meada! Seja notificado de novos posts.

Não enviamos e-mail marketing, apenas notificações de novos posts.

bottom of page