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Ôsse é Obsesivo pela Grámatica? Erre Erre e Seja Criativo!

  • Foto do escritor: Paulo André
    Paulo André
  • 27 de jun.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 18 de jul.


liberte-se dos limites que a gramatica coloca na escrita

A Subversão Gramatical como Ferramenta de Criação na Literatura


Na literatura, a gramática, muitas vezes vista como um conjunto rígido de regras, pode ser deliberadamente subvertida para se tornar uma poderosa ferramenta de criatividade, construção de estilo e expressão. Autores como James Joyce, Dalton Trevisan e João Guimarães Rosa são mestres nessa arte, desafiando convenções não por desconhecimento, mas por um profundo domínio da linguagem e um desejo de ir além do comum. Eles "erram" propositalmente para criar um impacto específico, seja ele um ritmo único, uma atmosfera particular ou uma voz autêntica.


James Joyce e o Fluxo de Consciência


Um dos maiores expoentes dessa subversão é James Joyce. Em sua obra-prima, Ulisses, ele emprega o fluxo de consciência, técnica que busca reproduzir o processo de pensamento humano, muitas vezes caótico e não-linear. Isso resulta em frases longas, ausência de pontuação tradicional, neologismos e uma sintaxe que desafia as normas gramaticais. O objetivo é imergir o leitor na mente do personagem, como neste trecho:

"Sim, disse sim, eu direi sim" (Ulysses)

Embora pareça simples, a repetição e a falta de pontuação aqui quebram a fluidez esperada, criando um efeito quase hipnótico que mimetiza a reflexão interna da personagem Molly Bloom. 👉👉 Saiba mais


Dalton Trevisan e a Lacuna como Expressão


Dalton Trevisan, o "Vampiro de Curitiba", é outro autor que utiliza a quebra gramatical para construir sua narrativa concisa e impactante. Em seus contos curtos, ele frequentemente omite verbos, preposições e artigos, criando um estilo telegráfico que potencializa a densidade do texto e a atmosfera de estranhamento e melancolia. A ausência se torna uma forma de presença, sugerindo mais do que explicitando. Veja este fragmento:

"Noiva. Pobre coitada. Aquele vestido. Aquele véu. Manchas. Barata na toalha." (Novelas Nada Exemplares)

Aqui, a falta de conectivos gramaticais acelera a leitura e enfatiza os substantivos, criando uma sensação de observação crua e fragmentada da realidade. A lacuna convida o leitor a preencher os espaços, tornando-o participante ativo na construção do sentido.


João Guimarães Rosa e a Reinvenção da Linguagem


No Brasil, João Guimarães Rosa talvez seja o maior exemplo de como a transgressão gramatical pode culminar em uma riqueza linguística ímpar. Em Grande Sertão: Veredas, ele forja uma linguagem própria, cheia de neologismos, arcaísmos, inversões sintáticas e uma prosódia que ecoa o falar sertanejo. A gramática tradicional é constantemente flexionada para expressar a complexidade do mundo e dos personagens. Observe este trecho:

"Nonada. Tiros que o senhor ouviu, vieram de algum lugar." (Grande Sertão: Veredas)

A palavra "Nonada" é um neologismo que mistura "não" e "nada", criando um termo com múltiplas camadas de sentido. A inversão "Tiros que o senhor ouviu, vieram de algum lugar" em vez de "Os tiros que o senhor ouviu vieram de algum lugar" reflete a oralidade e a construção peculiar da frase na fala popular, transportando o leitor para dentro do universo do sertão. Rosa não "errou" a gramática; ele a expandiu, demonstrando que a língua é um organismo vivo e mutável.

👉👉 Conto de Guimarães Rosa***


Outros Subversivos da Gramática


A lista de autores que desafiam as regras gramaticais em busca de expressão é vasta. Alguns outros exemplos notáveis incluem:

  • Clarice Lispector: Sua prosa é marcada por frases fragmentadas, repetições e uma sintaxe que por vezes parece "desencaixada", buscando expressar o indizível e as profundezas da alma humana.

  • E.E. cummings: O poeta americano é famoso por sua experimentação com a pontuação, o uso de minúsculas e a quebra da estrutura tradicional dos poemas para criar um impacto visual e sonoro único.

  • William Faulkner: Em seus romances, Faulkner emprega longas sentenças complexas, múltiplas vozes narrativas e uma pontuação não convencional para refletir a psique dos personagens e a fluidez do tempo.


A Subversão como Estilo e Expressão


Em suma, a subversão gramatical na literatura não é um descuido, mas uma escolha consciente e deliberada. Ela serve a múltiplos propósitos:

  • Criação de Ritmo e Musicalidade: A quebra de padrões pode gerar um ritmo próprio, uma cadência que imita o fluxo do pensamento ou a melodia da fala.

  • Ênfase e Impacto: A alteração da ordem das palavras ou a omissão de elementos pode chamar a atenção para certos termos ou ideias.

  • Reprodução da Oralidade: Muitos autores utilizam a "gramática popular" para dar autenticidade às vozes de seus personagens e regionalizar a narrativa.

  • Construção de uma Voz Narrativa Única: A maneira como um autor manipula a linguagem se torna parte intrínseca de seu estilo, tornando-o reconhecível.

  • Exploração de Novas Formas de Pensamento: Ao quebrar as estruturas convencionais, a linguagem se liberta para explorar o inconsciente, o ilógico e o subjetivo.

Esses autores nos mostram que a gramática não é uma jaula, mas um ponto de partida. Ao dominá-la e, em seguida, transgredi-la intencionalmente, eles expandem os limites da linguagem, criando obras que ressoam com originalidade e profundidade, redefinindo o que é possível dentro do universo literário.


Outros Mestres da Subversão Gramatical na Literatura


A riqueza da literatura reside, em parte, na ousadia de seus criadores em moldar a linguagem para além das convenções. Além de Joyce, Trevisan e Guimarães Rosa, muitos outros autores, tanto brasileiros quanto estrangeiros, exploraram a quebra gramatical como uma forma potente de expressão, estilo e criatividade. Vejamos alguns exemplos com trechos ilustrativos:


Clarice Lispector e a Sintaxe da Alma


Clarice Lispector é uma das maiores vozes da literatura brasileira, conhecida por sua prosa introspectiva e experimental. Ela frequentemente desviava da sintaxe convencional, usando frases fragmentadas, repetições e uma pontuação que parecia seguir um fluxo de consciência interno, buscando expressar o indizível, os paradoxos da existência e as profundezas da alma humana. Sua escrita muitas vezes se assemelha a um monólogo interior, com pausas e retomadas que mimetizam o processo do pensamento.

"Entender é o subentendido. Eu estava em frente do mar. O mar era grande. E azul. E o vento vinha do mar. Eu estava sozinha. E feliz. Sim, feliz. E eu não entendia." (A Paixão Segundo G.H.)

Neste trecho, a repetição de "E" e a ausência de conectivos mais elaborados criam uma sensação de observação crua e de uma mente processando o ambiente de forma quase tátil, sem a lógica linear da gramática normativa. É uma sintaxe da emoção, que prioriza a sensação sobre a explicação.


William Faulkner e o Fluxo Ininterrupto


O romancista americano William Faulkner, vencedor do Prêmio Nobel, é célebre por suas longas sentenças, com múltiplos encaixes e uma pontuação que desafia o leitor a acompanhar o fluxo de pensamentos de seus personagens. Sua técnica de fluxo de consciência, muitas vezes sem quebras de parágrafos óbvias ou pontuações que indicam diálogos, busca imergir o leitor na mente complexa e, por vezes, conturbada dos habitantes de seu fictício Condado de Yoknapatawpha.

"Então ele se sentou na cama na escuridão e ouviu o relógio da prefeitura badalar doze vezes e o sino da capela da universidade badalar doze vezes e o relógio da torre da corte badalar doze vezes e o relógio do banco badalar doze vezes e o relógio da prisão badalar doze vezes e um relógio em algum lugar na cidade badalar doze vezes e então ele esperou." (O Som e a Fúria)

A repetição exaustiva da palavra "badalar" e a ausência de pausas mais significativas (como pontos finais) constroem uma atmosfera opressiva de tempo que se arrasta, ao mesmo tempo em que mimetizam a obsessão ou a fixação mental do personagem. É uma acumulação rítmica que transcende a regra para criar imersão.


E.E. cummings e a Poesia Visual


No campo da poesia, o americano e.e. cummings é um mestre da subversão gramatical e da experimentação tipográfica. Ele frequentemente ignorava as regras de capitalização, pontuação e espaçamento, utilizando a forma visual do poema para complementar seu significado. Seus "erros" são, na verdade, um convite à leitura não linear, um jogo com a percepção do leitor.

"l(ale af fa ll s) one l iness" (L(a)

Neste famoso poema, a desagregação da palavra "loneliness" (solidão) e a forma como "a leaf falls" (uma folha cai) é inserida no centro, visualmente representa a solidão de uma única folha caindo. A quebra das palavras, a falta de capitalização e a disposição no espaço não são aleatórias; são elementos gráficos que compõem o sentido, rompendo com a gramática tradicional para explorar novas dimensões da linguagem.


Murilo Rubião e a Pontuação do Estranho


Murilo Rubião, um dos grandes nomes do conto fantástico brasileiro, utiliza uma linguagem aparentemente simples, mas que esconde sutis desvios gramaticais e de pontuação para construir um universo de estranhamento e absurdo. Suas escolhas sintáticas, por vezes, criam uma atmosfera de sonho ou pesadelo, onde a lógica cotidiana é subvertida.

"O homem era uma barata. Mas uma barata com gravata. E chapéu. De feltro." (O Ex-Mágico da Taberna Minhota)

A simplicidade quase infantil da construção, a pontuação que quebra a frase em pequenos fragmentos e a justaposição de elementos díspares criam um efeito de irrealidade. A gramática "correta" seria mais fluida, mas a escolha de Rubião, com seus pontos finais abruptos, enfatiza a estranheza da imagem, tornando a irrealidade palpável.


Raymond Queneau e a Elasticidade da Narrativa


O escritor francês Raymond Queneau, membro do grupo Oulipo (Oficina de Literatura Potencial), era um grande experimentador da linguagem. Em sua obra Exercícios de Estilo, ele narra a mesma história de 99 maneiras diferentes, utilizando diversas restrições formais, incluindo manipulações gramaticais e sintáticas. Ele demonstra como a forma, inclusive a gramática, pode transformar completamente a percepção de um evento.

"No S, ao meio-dia, em C, um J viu um H com um comprido P, discutir com um outro H, o qual tinha uma B." (Exercícios de Estilo - Estilo "Notarial")

Aqui, Queneau reduz a narrativa a iniciais, um extremo da abreviação gramatical. Embora seja um exemplo mais radical e lúdico, ele ilustra como a manipulação da estrutura linguística — incluindo a omissão e a simplificação de elementos gramaticais — pode gerar novos significados e efeitos, desafiando a expectativa do leitor sobre como uma história deve ser contada.


A Gramática como Campo de Jogo


Esses exemplos reforçam a ideia de que a gramática, nas mãos de autores talentosos, deixa de ser uma mera ferramenta de correção para se tornar um campo de jogo. As "transgressões" não são falhas, mas decisões artísticas que visam ampliar as possibilidades expressivas da linguagem, criar mundos internos e externos mais autênticos, e provocar o leitor a uma experiência literária mais profunda e envolvente.

Ao "errar" intencionalmente, esses autores nos ensinam que a verdadeira maestria da linguagem não está em seguir cegamente as regras, mas em saber quando e como quebrá-las para alcançar um propósito maior: a arte.



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