A Musa Não Manda Zap: Construindo o Hábito de Escrever Todos os Dias
- Ana Amélia

- 27 de set.
- 4 min de leitura
O Mito do Caos Criativo: Por Que Sua Rotina é Sua Melhor Amiga

Olá, sofredores das letras. Ana Amélia por aqui, pronta para servir uma dose de realidade amarga, mas necessária. Hoje, vamos derrubar o altar de um dos santos mais inúteis do panteão dos escritores: o Caos Criativo.
Vocês conhecem a lenda: o artista genial, de cabelo desgrenhado, que só escreve entre as 3 e as 5 da manhã, movido a absinto e angústia existencial. A inspiração o atinge como um raio, e ele produz uma obra-prima em um surto febril de criatividade.
Que imagem linda, né? Romântica. E, na maioria das vezes, uma completa e absoluta mentira.
Essa ideia de que a criatividade nasce da desordem é o melhor álibi para a procrastinação. A gente fica esperando a "musa", o "momento certo", o "alinhamento dos planetas". Enquanto isso, a página continua em branco e a história que você quer contar morre um pouco a cada dia.
A verdade, meus caros, é bem menos glamorosa: a criatividade profissional é filha da disciplina. A inspiração existe, sim, mas ela tem o péssimo hábito de só aparecer para quem está trabalhando.
Os Mestres Eram Operários, Não Mágicos
Acha que estou inventando? Que estou tentando matar a poesia do ato de criar? Então vamos perguntar a quem entende do assunto. Os grandes nomes da literatura não eram vagabundos esperando um milagre; eram operários da palavra, com horário para entrar e, às vezes, até para sair.
Gustave Flaubert e a Tortura da Rotina

Flaubert, o autor de Madame Bovary e um dos estilistas mais obsessivos da história, tratava a escrita como um trabalho braçal, uma sentença. Ele não tinha nada de romântico.
Levei cinco dias para escrever uma página... Minha vida, que poucos conhecem, é um trabalho de Hércules, e sem a glória. Às vezes, quando sinto a minha cabeça vazia, quando me encontro no fundo do meu poço, depois de ter esquadrinhado o meu pobre cérebro em busca de uma palavra e não a ter encontrado, sinto o horror da desolação. Há dias em que a tarefa me parece superior às forças humanas.
Perceberam? Ele não esperava a palavra perfeita chegar voando pela janela. Ele "esquadrinhava o cérebro", ele se sentia no fundo do poço, ele trabalhava por cinco dias em uma única página. A genialidade de Flaubert não veio do caos, mas de uma rotina brutal e de uma persistência quase masoquista. Ele se acorrentava à mesa até a frase sair.
Haruki Murakami e o Ritual do Atleta
Saltando para os nossos tempos, temos o japonês Haruki Murakami. Seus livros são surreais, cheios de gatos falantes e mundos paralelos. A vida do autor, no entanto, é o oposto disso: um primor de organização.
Quando estou em modo de escrita para um romance, levanto-me às 4 da manhã e trabalho durante cinco a seis horas. À tarde, corro 10 quilômetros ou nado 1500 metros (ou faço ambos), depois leio um pouco e ouço música. Vou para a cama às 9 da noite. Mantenho esta rotina todos os dias, sem variação. A repetição em si torna-se o importante; é uma forma de mesmerismo. Eu hipnotizo-me para atingir um estado de espírito mais profundo.
Murakami não está falando de arte, está falando de treino. Ele trata a escrita como um esporte de alta performance. A rotina rígida não mata a sua imaginação; pelo contrário, ela cria o "estado de espírito mais profundo" onde a imaginação pode florescer sem distrações. A repetição o liberta.
Chega de Desculpas: Como Criar Sua Própria Jaula Criativa
"Ok, Ana, entendi. Mas eu tenho trabalho, família, boletos. Não sou o Murakami." Eu sei. A questão não é copiar a rotina deles, mas entender o princípio e criar a sua. Uma rotina realista, mesmo que seja minúscula.
Proponho a Tríade Sagrada do Hábito de Escrita:
1. O Gatilho (O seu "café")
É o sinal que você dá ao seu cérebro de que "agora é hora de escrever". Não precisa ser o café. Pode ser:
Sentar-se sempre na mesma cadeira.
Abrir um documento específico no computador.
Colocar uma playlist que você só ouve para escrever.
Acender uma vela.
O gatilho é o interruptor. Ele automatiza o início do processo e diminui a necessidade de força de vontade.
2. A Rotina (O trabalho em si)
É aqui que a mágica (ou melhor, o trabalho) acontece. A regra de ouro? Comece pequeno. Não prometa a si mesmo que vai escrever por duas horas se você não tem esse tempo. Comece com 15 ou 20 minutos. Sério. O mais importante é a consistência. É melhor escrever por 15 minutos todos os dias do que por três horas em um sábado por mês. Crie o músculo. Crie o hábito.
3. A Recompensa (O biscoitinho do cachorro)
Seu cérebro adora uma recompensa. Depois de cumprir sua meta de escrita (seja de tempo ou de palavras), dê a si mesmo um pequeno prêmio.
Um episódio da sua série favorita.
Cinco minutos rolando o feed das redes sociais sem culpa.
Um chocolate.
Qualquer coisa que lhe dê uma pequena onda de prazer.
Isso fecha o ciclo do hábito e faz seu cérebro querer repetir a dose no dia seguinte.
Então, chega de esperar a musa. Ela provavelmente está ocupada visitando o Murakami no Japão. Sua criatividade não é uma entidade mística, é uma parceira de trabalho. E ela gosta de pontualidade.
Construa a rotina. Honre o compromisso. Acredite: a página em branco tem muito mais medo de um escritor disciplinado do que de um gênio caótico.


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