top of page

Resultados encontrados para busca vazia

  • "Alguma coisa urgentemente" de João Gilberto Noll

    OS PRIMEIROS ANOS DE VIDA  suscitaram em mim o gosto da aventura. O meu pai dizia não saber bem o porquê da existência e vivia mudando de trabalho, de mulher e de cidade. A característica mais marcante do meu pai era a sua rotatividade. Dizia-se filósofo sem livros, com uma única fortuna: o pensamento. Eu, no começo, achava meu pai tão-só um homem amargurado por ter sido abandonado por minha mãe quando eu era de colo. Morávamos então no alto da Rua Ramiro Barcelos, em Porto Alegre, meu pai me levava a passear todas manhãs na Praça Júlio de Castilhos e me ensinava os nomes das árvores, eu não gostava de ficar só nos nomes, gostava de saber as características de cada vegetal, a região de origem. Ele me dizia que o mundo não era só aquelas plantas, era também as pessoas que passavam e as que ficavam e que cada um tem o seu drama. Eu lhe pedia colo. Ele me dava e assobiava uma canção medieval que afirmava ser a sua preferida. No colo dele eu balbuciava uns pensamentos perigosos: — Quando é que você vai morrer? — Não vou te deixar sozinho, filho! Falava-me com o olhar visivelmente emocionado e contava que antes me ensinaria a ler e escrever. Ele fazia questão de esquecer que eu sabia de tudo o que se passava com ele. Pra que ler? — eu lhe perguntava. Pra descrever a forma desta árvore — respondia-me um pouco irritado com minha pergunta. Mas logo se apaziguava. — Quando você aprender a ler vai possuir de alguma forma todas as coisas, inclusive você mesmo. No final de 1969 meu pai foi preso no interior do Paraná. (Dizem que passava armas a um grupo não sei de que espécie.) Tinha na época uma casa de caça e pesca em Ponta Grossa e já não me levava a passear. No dia em que ele foi preso, eu fui arrastado para fora da loja por uma vizinha de pele muito clara, que me disse que eu ficaria uns dias na casa dela, que o meu pai iria viajar. Não acreditei em nada mas me fiz de crédulo como convinha a uma criança. Pois o que aconteceria se eu lhe dissesse que tudo aquilo era mentira? Como lidar com uma criança que sabe? Puseram-me num colégio interno no interior de São Paulo. O padre diretor me olhou e afirmou que lá eu seria feliz. — Eu não gosto daqui. — Você vai se acostumar e até gostar. Os colegas me ensinaram a jogar futebol, a me masturbar e a roubar a comida dos padres. Eu ficava de pau duro e mostrava aos colegas. Mostrava as maçãs e os doces do roubo. Contava do meu pai. Um deles me odiava. O meu pai foi assassinado, me dizia ele com ódio nos olhos. O meu pai era bandido, ele contava espumando o coração. Eu me calava. Pois se referir ao meu pai presumia um conhecimento que eu não tinha. Uma carta chegou dele. Mas o padre-diretor não me deixou lê-la, chamou-me no seu gabinete e contou que o meu pai ia bem. — Ele vai bem. Eu agradeci como normalmente fazia em qualquer contato com o padre-diretor e saí dizendo no mais silencioso de mim: — Ele vai bem. O menino que me odiava aproximou-se e falou que o pai dele tinha levado dezessete tiros. Nas aulas de religião o padre Amâncio nos ensinava a rezar o terço e a repetir jaculatórias. — Salve Maria! — ele exclamava a cada início de aula. — Salve Maria! — os meninos respondiam em uníssono. Quando cresci meu pai veio me buscar e ele estava sem um braço. O padre-diretor me perguntou: — Você quer ir? Olhei para meu pai e disse que eu já sabia ler e escrever. — Então você saberá de tudo um dia — ele falou. O menino que me odiava ficou na porta do colégio quando da nossa partida. Ele estava com o seu uniforme bem lavado e passado. Na estrada para São Paulo paramos num restaurante. Eu pedi um conhaque e meu pai não se espantou. Lia um jornal. Em São Paulo fomos para um quarto de pensão onde não recebíamos visitas. — Vamos para o Rio — ele me comunicou sentado na cama e com o braço que lhe restava sobre as pernas. No Rio fomos para um apartamento na Avenida Atlântica. De amigos, ele comentou. Mas embora o apartamento fosse bem mobiliado, ele vivia vazio. — Eu quero saber — eu disse para o meu pai. — Pode ser perigoso — ele respondeu. E desliguei a televisão como se pronto para ouvir. Ele disse não. Ainda é cedo. E eu já tinha perdido a capacidade de chorar. Eu procurei esquecer. Meu pai me pôs num colégio em Copacabana e comecei a crescer como tantos adolescentes do Rio. Comia a empregada do Alfredinho, um amigo do colégio, e, na praia, precisava sentar às vezes rapidamente porque era comum ficar de pau duro à passagem de alguém. Fingia então que observava o mar, a performance de algum surfista. Não gostava de constatar o quanto me atormentavam algumas coisas. Até meu pai desaparecer novamente. Fiquei sozinho no apartamento da Avenida Atlântica sem que ninguém tomasse conhecimento. E eu já tinha me acostumado com o mistério daquele apartamento. Já não queria saber a quem pertencia, porque vivia vazio. O segredo alimentava o meu silêncio. E eu precisava desse silêncio para continuar ali. Ah, me esqueci de dizer que meu pai tinha deixado algum dinheiro no cofre. Esse dinheiro foi o suficiente para sete meses. Gastava pouco e procurava não pensar no que aconteceria quando ele acabasse. Sabia que estava sozinho, com o único dinheiro acabando, mas era preciso preservar aquele ar folgado dos garotos da minha idade, falsificar a assinatura do meu pai sem remorsos a cada exigência do colégio. Eu não dava bola para a limpeza do apartamento. Ele estava bem sujo. Mas eu ficava tão pouco em casa que não dava importância à sujeira, aos lençóis encardidos. Tinha bons amigos no colégio, duas ou três amigas que me deixavam a mão livre para passá-la onde eu bem entendesse. Mas o dinheiro tinha acabado e eu estava caminhando pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana tarde da noite, quando notei um grupo de garotões parados na esquina da Barão de Ipanema, encostados num carro e enrolando um baseado. Quando passei, eles me ofereceram. Um tapinha? Eu aceitei. Um deles me disse olha ali, não perde essa, cara! Olhei para onde ele tinha apontado e vi um Mercedes parado na esquina com um homem de uns trinta anos dentro. Vai lá, eles me empurraram. E eu fui. — Quer entrar? — o homem me disse. Eu manjei tudo e pensei que estava sem dinheiro. — Trezentas pratas — falei. Ele abriu a porta e disse entra, o carro subiu a Niemeyer, não havia ninguém no morro em que o homem parou. Uma fita tocava acho que uma música clássica e o homem me disse que era de São Paulo. Me ofereceu cigarro, chiclete e começou a tirar a minha roupa. Eu pedi antes o dinheiro. Ele me deu as três notas de cem abertas, novinhas. E eu nu e o homem começando a pegar em mim, me mordia de ficar marca, quase me tira um pedaço da boca. Eu tinha um bom físico e isso excitava ele, deixava o homem louco. A fita tinha terminado e só se ouvia um grilo. — Vamos — disse o homem ligando o carro. Eu tinha gozado e precisei me limpar com a sunga. No dia seguinte meu pai voltou, apareceu na porta muito magro, sem dois dentes. Resolvi contar: — Eu ontem me prostituí, fui com um homem em troca de trezentas pratas. Meu pai me olhou sem surpresas e disse que eu procurasse fazer outra história da minha vida. Ele então sentou-se e foi incisivo: — Eu vim para morrer. A minha morte vai ser um pouco badalada pelos jornais, a polícia me odeia, há anos me procura. Vão te descobrir mas não dê uma única declaração, diga que não sabe de nada. O que é verdade. — E se me torturarem? — perguntei. — Você é menor e eles estão precisando evitar escândalos. Eu fui para a janela pensando que ia chorar, mas só consegui ficar olhando o mar e sentir que precisava fazer alguma coisa urgentemente. Virei a cabeça e vi que meu pai dormia. Aliás, não foi bem isso o que pensei, pensei que ele já estivesse morto e fui correndo segurar o seu único pulso. O pulso ainda tinha vida. Eu preciso fazer alguma coisa urgentemente, a minha cabeça martelava. É que eu não tinha gostado de ir com aquele homem na noite anterior, meu pai ia morrer e eu não tinha um puro centavo. De onde sairia a minha sobrevivência? Então pensei em denunciar meu pai para a polícia para ser recebido pelos jornais e ganhar casa e comida em algum orfanato, ou na casa de alguma família. Mas não, isso eu não fiz porque gostava do meu pai e não estava interessado em morar em orfanato ou com alguma família, e eu tinha pena do meu pai deitado ali no sofá, dormindo de tão fraco. Mas precisava me comunicar com alguém, contar o que estava acontecendo. Mas quem? Comecei a faltar às aulas e ficava andando pela praia, pensando o que fazer com meu pai que ficava em casa dormindo, feio e velho. E eu não tinha arranjado mais um puto centavo. Ainda bem que tinha um amigo vendedor daquelas carrocinhas da Geneal que me quebrava o galho com um cachorro-quente. Eu dizia bota bastante mostarda, esquenta bem esse pão, mete molho. Ele obedecia como se me quisesse bem. Mas eu não conseguia contar para ele o que estava acontecendo comigo. Eu apenas comentava com ele a bunda das mulheres ou alguma cicatriz numa barriga. É cesariana, ele ensinava. E eu fingia que nunca tinha ouvido falar em cesariana, e aguçava seu prazer de ensinar o que era cesariana. Um dia ele me perguntou: — Você tem quantos irmãos? Eu respondi sete. — O teu pai manda brasa, hein? Fiquei pensando no que responder, talvez fosse a ocasião de contar tudo pra ele, admitir que eu precisava de ajuda. Mas o que um vendedor da Geneal poderia fazer por mim senão contar para a polícia? Então me calei e fui embora. Quando cheguei em casa entendi de vez que meu pai era um moribundo. Ele já não acordava, tinha certos espasmos, engrolava a língua e eu assistia. O apartamento nessa época tinha um cheiro ruim, de coisa estragada. Mas dessa vez eu não fiquei assistindo e procurei ajudar o velho. Levantei a cabeça dele, botei um travesseiro embaixo e tentei conversar com ele. — O que você está sentindo? — perguntei. — Já não sinto nada — ele respondeu com uma dificuldade que metia medo. — Dói? — Já não sinto dor nenhuma. De vez em quando lhe trazia um cachorro-quente que meu amigo da Geneal me dava, mas meu pai repelia qualquer coisa e expulsava os pedaços de pão e salsicha para o canto da boca. Numa dessas ocasiões em que eu limpava os restos de pão e salsicha da sua boca com um pano de prato a campainha tocou. A campainha tocou. Fui abrir a porta com muito medo, com o pano de prato ainda na mão. Era o Alfredinho. — A diretora quer saber por que você nunca mais apareceu no colégio — ele perguntou. Falei pra ele entrar e disse que eu estava doente, com a garganta inflamada, mas que eu voltaria pro colégio no dia seguinte porque já estava quase bom. Alfredinho sentiu o cheiro ruim da casa, tenho certeza, mas fez questão de não demonstrar nada. Quando ele sentou no sofá é que eu notei como o sofá estava puído e que Alfredinho sentava nele com certo cuidado, como se o sofá fosse despencar debaixo da bunda, mas ele disfarçava e fazia que não notava nada de anormal, nem a barata que descia a parede à direita, nem os ruídos do meu pai que às vezes se debatia e gemia no quarto ao lado. Eu sentei na poltrona e fiquei falando tudo que me vinha à cabeça para distraí-lo dos ruídos do meu pai, da barata na parede, do puído do sofá, da sujeira e do cheiro do apartamento, falei que nos dias da doença eu lia na cama o dia inteiro umas revistinhas de sacanagem, eram dinamarquesas as tais revistinhas, e sabe como é que eu consegui essas revistinhas? roubei no escritório do meu pai, estavam escondidas na gaveta da mesa dele, não te mostro porque emprestei pra um amigo meu, um sacana que trabalha numa carrocinha da Geneal aqui na praia, ele mostrou pra um amigo dele que bateu uma punheta com a revistinha na mão, tem uma mulher com as pernas assim e a câmera pega a foto bem daqui, bem daqui cara, á como os caras tiraram a foto da mulher, ela assim e a câmera pega bem desse ângulo aqui, não é de bater uma punheta mesmo? a câmera pertinho assim e a mulher nua e com as pernas desse jeito, não tou mentindo não cara, você vai ver, um dia você vai ver, só que agora a revistinha não tá comigo, por isso que eu digo que ficar doente de vez em quando é uma boa, eu o dia inteiro deitado na cama lendo revistinha de sacanagem, sem ninguém pra me aporrinhar com aula e trabalho de grupo, só eu e as minhas revistinhas, você precisava ver, cara, você também ia curtir ficar doente nessa de revistinha de sacanagem, ninguém pra me encher o saco, ninguém cara, ninguém. Aí eu parei de falar e o Alfredinho me olhava como se eu estivesse falando coisas que assustassem ele, ficou me olhando com uma cara de babaca, meio assim desconfiado, e nem sei bem o que passou pela cabeça dele quando meu pai lá no quarto me chamou, era a primeira vez que meu pai me chamava pelo nome, eu mesmo levei um susto de ouvir meu pai me chamar pelo meu nome, e me levantei meio apavorado porque não queria que ninguém soubesse do meu pai, do meu segredo, da minha vida, eu queria que o Alfredinho fosse embora e que não voltasse nunca mais, então eu me levantei e disse que tinha que fazer uns negócios, e ele foi caminhando de costas em direção à porta, como se estivesse com medo de mim, e eu dizendo que amanhã eu vou aparecer no colégio, pode dizer pra diretora que amanhã eu converso com ela, e o meu pai me chamou de novo com sua voz de agonizante, o meu pai me chamava pela primeira vez pelo meu nome, e eu disse tchau até amanhã, e o Alfredinho disse tchau até amanhã, e eu continuava com o pano de prato na mão e fechei a porta bem ligeiro porque não aguentava mais o Alfredinho ali na minha frente não dizendo nem uma palavra, e fui correndo pro quarto e vi que o meu pai estava com os olhos duros olhando pra mim, e eu fiquei parado na porta do quarto pensando que eu precisava fazer alguma coisa urgentemente.   Quem foi João Gilberto Noll João Gilberto Noll (1946-2017) foi um dos mais aclamados e singulares escritores brasileiros de sua geração. Nascido em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Noll construiu uma obra marcada pela originalidade... pelo experimentalismo linguístico e por uma profunda investigação da condição humana. Seus textos, frequentemente permeados por uma atmosfera onírica e de estranhamento, exploram temas como a identidade, o desamparo, a busca por sentido e a fluidez da existência. Com uma prosa concisa e fragmentada, mas de grande impacto, Noll conquistou diversos prêmios literários, incluindo cinco Jabutis. Entre suas obras mais notáveis estão "Bandoleros" (1992), "Harmada" (1993) e "Lorde" (2004). Sua literatura continua a influenciar e intrigar leitores e críticos, consolidando-o como uma voz essencial na ficção brasileira contemporânea.

  • O Japonês dos Olhos Redondos de Zulmira Ribeiro Tavares

    Meu amigo e informante almoça comigo aos domingos em minha casa. Ele é desquitado, não tem filhos, eu, um solteirão. Ele vive de rendas, poucas, eu sou tradutor, tenho algumas economias além da casa própria. Nada nos aflige em particular; nem a velhice um dia — já passamos os quarenta, somos contemporâneos, a data exata de nosso nascimento vai mais por conta da imaginação do que dos fatos; com isso mostro-me francamente otimista, não acho que estamos nos saindo assim tão mal; fazemos o nosso cooper na pista do parque Ibirapuera nas manhãs de domingo e depois do chuveiro nos premiamos com um bom almoço comprado no restaurante da rua de trás; a que sai da avenida larga, aquela avenida extensa onde um dia existiu apenas o leito para as águas sujas do córrego do Sapateiro. Digo que meu amigo além de amigo é informante porque é ele que aos domingos reapresenta o mundo e as coisas para mim. Não que eu não tenha ideias. Como não? E muitas! Mas ele, por assim dizer, é quem anuncia primeiro, ele que primeiro assinala, descreve, interpreta. Eu me resguardo. Quase sempre me calo. Mas quando a discordância é muita, respondo. Em suma: ele que me informa verdadeiramente sobre as coisas, eu simplesmente reajo. O que tenho e o que sei são em princípio para o meu uso. Deixo que as impressões se acumulem, deixo que desçam fundo e formem um depósito. É o meu amigo que faz nascer, por oposição, o meu mundo desse depósito, tudo: uma espécie de vórtice ao contrário que se pusesse em movimento por efeito de alguma palavra sua e, em margens circulares cada vez mais amplas, fosse largando sucessivamente: minha casa, o bairro, suas ruas, enfim as ideias, as cidades, fortificações concêntricas, perfeitamente estruturadas que ninguém diria pudessem brotar da natureza até certo ponto amorfa como vem a ser a dos depósitos. Sendo esse o caso, eu dependendo da sua informação para colocar a minha, tenho-me na conta e acertadamente, de seu contra-informante. Não deve causar espécie a ideia de eu procurar definir nossas manifestações recíprocas de amizade como atos de informação e contra-informação. Afinal somos, como todos em quem esbarramos andando por aí mais ou menos de pé, os transeuntes da contrarevolução de 64 (que meu amigo insiste em chamar de revolução). Veios desgarrados e insubmissos do córrego do Sapateiro ou de algum outro que eu nunca soube, fizeram — ajudados pelos aguaceiros de verão — o seu trabalho de sapa no subsolo do meu terreno. Metade do muro da frente desabou. Contratei dois pedreiros que amanhã tornam a erguê-lo, talvez mova um processo contra a Prefeitura por perdas e danos, mas hoje: Uma paisagem nova abre-se para mim e meu amigo. Defronte, a casa do tintureiro torna-se próxima e animada. O tintureiro, coisa que nunca me ocorreu, também não trabalha ao domingos. Anda de lá para cá na sua propriedade, ergue-se, senta-se, almoça, cuida da sua cerca-viva de azaleias. Sorri, cumprimenta: — Meu amigo, duríssimo e preciso, informa-me no ato: — Dissimulado como todos os japoneses. Reparou no sorriso? Calo-me como é de meu feitio. — Reparou no sorriso? De início acho mais prudente responder-lhe com outra pergunta para ver se o distraio das vertentes sem volta onde usualmente sua retórica imbatível o lança. Arrisco: — Que sorriso? — Pergunta estapafúrdia! E grosseira se me permite a franqueza! De quem havia de ser o sorriso? O seu? Não gastaria um perdigoto para descrevê-lo! O do muro caído? Sorriem os muros por acaso? E ainda que assim fosse, teria esse muro em especial, razões particulares para sorrir? Permaneço razoavelmente calmo. Mastigo minha lasanha, bebo um gole do tinto, brinco com o guardanapo. Ouso mesmo a barbaridade do lugarcomum: — Parece que vai chover. Meu informante lambe o dedo indicador e o espeta para fora da janela na mornidão do dia para ver de que lado vem o vento; não vem de nenhum. Na casa defronte observa-o o vizinho tintureiro, o sorriso aumenta, quase um riso. Meu amigo recolhe o dedo sobressaltado; volta à carga: — Você tem ainda o desplante de me perguntar que sorriso? Faz calor na sala, acho-me antecipadamente cansado e concedo: — Suponho que queira se referir ao tintureiro meu vizinho, não? — Japonês! Sinto-me no direito de manifestar meu espanto jogando o guardanapo com força sobre a mesa. Meu amigo o ignora e volta à carga: — Reparou no sorriso? Se não reparou há pouco tem oportunidade agora pois o dissimulado continua de boca aberta! Apesar de ser impossível ao vizinho pegar o conteúdo das palavras de meu informante, eu, como forma de compensação, cumprimento-o várias vezes, aceno-lhe, agito aflitivamente o guardanapo como se fosse uma bandeirinha de sinaleiro. — Vai em frente, vai em frente — provoca meu amigo. — Só falta você se jogar pela janela e ir lhe lamber os pés! Inocente útil! E se fosse um espião? — Um espião!? — Confundo-me, interrompo-me, vejo que me deixei apanhar numa armadilha. É preciso voltar atrás. Retomar o fio. Afasto o copo de vinho, procuro ficar lúcido como um filamento aceso, falo escandindo as sílabas: — Meu caro, o que o leva a supor que estamos diante de um tintureiro japonês? Meu amigo e informante responde limpidament , os olhos postos no outro lado da rua: — Reparou na natureza do sorriso? — Muito franco, muito aberto, se quer saber. Particularmente amigável. — Perfeitamente, aí reside a completa dissimulação; aí também começa a pista. Meu Deus, meu Deus! Você é mesmo um simples de coração! Um sorriso dissimulado que se mostrasse francamente dissimulado, o seria? hein? Sua lógica perfeita mantém minha boca fechada. — Um sorriso dissimuladamente franco, por sua vez, teria alguma coisa a ver com esse caso? Não, claro, porque um sorriso dessa espécie nada mais é que o de um caráter franco que por pudor se oculta, disfarça por timidez suas manifestações mais sinceras, está me seguindo? Aprovo com a cabeça e tomo mais vinho. — Agora, o que me diz de um sorriso francamente franco? Hum? Aliso a toalha da mesa e me permito regurgitar de forma audível para mostrar que não apenas estou na minha casa como estou muito à vontade na minha casa. Mas meu amigo encontra-se surdo para tudo que não diga respeito à sua cerrada argumentação; continua: — É na manifestação absoluta de franqueza, no sorriso inteiramente aberto sem qualquer hesitação que igualmente se manifesta a máxima dissimulação é lógico! Sendo assim, irritado no limite da cólera eu o interrompo: — Muito bem! E aonde está querendo chegar? Meu amigo pede calma; repete a lasanha, está seguro como em raros domingos eu o vi e particularmente satisfeito: — Meu caro, não estou querendo chegar porque já cheguei. O sorriso perfeitamente franco desse seu vizinho tintureiro naturalmente não faz mais do que exprimir a capacidade para a perfeita dissimulação, própria da raça! — Que raça? — Recomeçamos como no caso do sorriso? Que raça, que raça! — Amarela, amarela! Japonesa, japonesa! Preciso ficar aqui repetindo como um disco quebrado? Amarela! Amarela! Japonesa! Japonesa! Respiro fundo, enxugo o suor da testa com a ponta do guardanapo, um gesto que reconheço desagradável e que nunca pensei fazer diante de terceiros. Meu amigo desvia os olhos de mim com uma ponta de repugnância em uma dessas manifestações espontâneas de rejeição pelo outro que mesmo a maior amizade não consegue sempre ocultar. Pergunto, novamente destacando as sílabas: — O que o leva a supor que tenha diante dos olhos, ali defronte, um cidadão japonês? — Ora, ora! Não bastasse o sorriso, a profissão! — E por que os tintureiros teriam que ser necessariamente japoneses? — Meu caro, não necessariamente. Mas veja, sem querer chamá-lo de ignorante, suponho que você conheça algo sobre imigração japonesa, as diversas profissões ocupadas no Estado de S. Paulo no meio urbano depois que os descendentes dos primeiros japoneses, deixando a lavoura... — Basta! — Pois bem, basta. Não pensei em ofendê-lo. Mas quando se junta a essa característica ocupacional típica, outra característica também típica, étnica ou cultural, como queira, o sorriso dissimulado, o que mais precisa para formar um juízo? Sinto que a minha jugular lateja. Nunca pensei até o dia de hoje na minha jugular, nunca pensei em nomeá-la, tenho até dúvidas se é a jugular mesmo, mas algo no meu pescoço pula de forma insistente como se fosse a qualquer momento escapar do estojo da pele, minhas palavras se atropelam, afasto o copo de vinho, digo respirando fundo: — Se outros sinais não lhe foram suficientes, tenho o prazer aqui agora de lhe afirmar que ali defronte achase um tintureiro brasileiro! Um tintureiro brasileiro, nem mais nem menos! — Um nisei, quer você dizer? — Não, não é um nisei o que eu quero dizer. Trata-se de um tintureiro brasileiro, brasileiro! Cujo pai porém, além de não ter sido um japonês, também não foi um português! Ou africano, ou italiano! — Ah, ah, e como então se chama esse senhor “brasileiro”? — Meu amigo aspeia a palavra no ar com grande habilidade cênica. — Marcus Czestochowska! não sei se pronuncio certo, o que não vem ao caso. — E como vem! Divina Providência! Czestochowska, Kurosawa! O que quer mais? — Como o que quero? — Então, não conhece o diretor japonês de cinema, Akira Kurosawa? Não percebe que se trata de nomes gêmeos, com o mesmo peso sonoro, provindos do mesmo chão? Estou farto e não o escondo: — Não seja imbecil, é um nome polonês, aliás o nome de uma cidade da Polônia. Nunca ouviu falar de Matka Boska Czestochowska, analfabeto? É a Virgem Maria, é uma imagem da Virgem Maria que existe pendurada numa igreja em Czestochowska! Provavelmente a ideia de adotar o nome da cidade como nome de família vem de algum ascendente mais remoto que simples pais ou avós, arrastado, quem sabe, por irresistível surto de nacionalismo exaltado ou catolicismo triunfalista, que sei eu? Meu amigo balança a cabeça penalizado por mim e por meu empenho. Não serão questiúnculas, ciscos como esses que o irão demover quando algo verdadeiramente grande se acha à sua frente. Não ele! Enumera em voz alta contando nos dedos: — O sorriso, a profissão, a geminação sonora, três dados. Como não bastassem, o quarto e que arrasta e confirma os outros três: a ocultação da nacionalidade (com ou sem adulteração de documentos o que aqui é irrelevante). Oh, meu Deus, se fosse no tempo da guerra quando o Brasil declarou guerra ao Eixo eu simplesmente denunciaria e mandaria prender esse japonês! Mas as suponho coloridas, são varejeiras, mil, as asas irisadas, batem na parte interna do crânio, as asas como mica ao sol, cintilam, fracionam-se em mil outras, enchem-se a cabeça de som, cascalho e loucura. Agarrome aos fiapos de razão que sobram, procuro manter-me à tona, contra-argumento: — Espere que o homem se vire para nós, olhe, vem vindo para mexer de novo na cerca, aproveite agora que está bem de frente; observe: que cor tem o seu rost? é amarelo? pálido? negro? Meu informante retruca sem medo: — Rosado, não o nego. E não teria por quê. Ganho forças paulatinamente, continuo: — Bem, agora preste muita atenção. E os seus olhos, serão oblíquos? amendoados? puxados? entrefechados? Meu amigo dá um pequeno salto e sufoca um grito que me parece de exultação e que talvez pela proximidade do assunto me lembra muito o sinal de luta dos samurais como sempre vejo no cinema. Ele investe: — Era por aqui que você queria me pegar? Oh, meu Deus mas a que primarismo chegamos! Para você então o real é o imediatamente dado, suponho? Na sua idade! Não quero saber de conversa fiada; insisto: — Seus olhos, seus olhos, responda-me! — Com prazer, com muito prazer! Redondos, REDONDOS! As moscas varejeiras retornam pelos ouvidos nas palavras de meu amigo, entram e dançam dentro da cabeça. Mas eu quase mecanicamente vou em frente: — A cor? Meu amigo informa-me com a segurança e a alegria de um colorista nato: — Azuis, azuis! Você duvida? Olhe lá em frente! Do outro lado da rua, no jardim da casa oposta, os olhos de meu querido vizinho Marcus Czestochowska reluzem como dois faroletes celestes, cintilam em nossa direção curiosos. Já perceberam uma movimentação ativa demais para uma simples mesa de almoço. Meu amigo agora fará sua preleção final: — Você talvez veja pouco televisão, talvez a julgue um divertimento menor, um veículo plebeu. É pena. Se a visse com regularidade como eu, talvez soubesse que durante muito tempo teve enorme sucesso aqui no país um seriado japonês, um desenho animado em episódios chamado “Taro Kid”. Pois bem, o herói desse seriado japonês tinha que tipo de olhos? Puxados, por acaso? Redondos, absolutamente redondos! Mesmo hoje se você ligar a televisão para ver desenho japonês não vai ver coisa diferente. Mas o “Taro Kid” é que chamou primeiro atenção para o fato, por isso eu cito. Se você além disso deixasse essa inércia, descolasse o traseiro aí de Vila Nova e fosse dar uma volta pela Liberdade, veria muitos outros desenhos japoneses onde os heróis sempre, com raríssimas exceções, têm os olhos? — Absolutamente redondos — respondo com um fio de voz. — Você em sua cegueira dirá que isso acontece por motivos de aculturação, exportação, etc. etc. Invocará (pois passei a conhecê-lo bem de 64 para cá) mil fatores heterogêneos, indústria, capital, alteridade, interculturalidade, com a maior sem-cerimônia. E botará esse equipamento todo em cena, para quê? Para complicá-la. E tudo isso com que finalidade? Recusar mais uma vez teimosamente. — A perfeita dissimulação! — Própria da raça! — Amarela! Mas meu amigo ainda não terminou: — E a coisa não fica só ao nível da imagem cinematográfica, não senhor, irradia-se para o humano, lá chega, penetra a carne, o conteúdo mesmo dessa imagem de cinema! Você naturalmente (ou pelo menos assim espero) já leu alguma coisa sobre imigração japonesa nos Estados Unidos? — Não tive a oportunidade. — É pena, é pena. Pois bem, informo-lhe; não irá perder a informação, não por mim. A coisa é a seguinte: mesmo sem nenhum casamento misto, sem nenhum fator de miscigenação, alguns traços físicos desses imigrantes começam a mudar, inicialmente constatou-se a alteração na altura média, devida provavelmente à alimentação diversa, ao clima etc. Agora ouça. Acho-me imóvel com a cabeça ligeiramente estendida para meu amigo de forma que o sol quente da tarde se abate sobre minhas orelhas, elas ardem fundo como duas línguas de fogo, duas labaredas apertando-me o crânio, para todos os efeitos sou mesmo “todo ouvidos”. — Ouça —, insiste mais uma vez meu amigo, não satisfeito com minha docilidade acesa e visível. — Ouça, ouça que tudo é ganho. Você (e não se é cientista, mesmo de domingo aqui como eu, se não se tem muito de imaginação criadora, se não se lança um grão de audácia dentro do rigor lógico!), você já pensou a que níveis extensos de dissimulação, a apropriação e controle dessa possibilidade de modificação dos caracteres físicos pode chegar? A miscigenação, e que seria à primeira vista a dissimulação mais evidente, fácil e completa, é bem outra coisa, na verdade a nega e por isso deve ser posta de lado nessa ordem de raciocínio. Pois no caso da miscigenação, a desaparição de características raciais se irá dar não por sua ocultação — o que aqui nos interessa — mas pela sua “confusão”, pela sua “imersão” ou “solubilidade” em contato com outros genes, seria portanto na verdade a extinção da própria dissimulação, marca distintiva do biótipo em pauta (-e nessa altura meu informante faz uma pequena pausa, dá uma piscadela e aponta de forma significativa com o queixo, a casa defronte -). Já pensou como o controle e desenvolvimento dessa possibilidade de alteração física sem cruzamento vem a ser tão mais grave exatamente na medida em que ocorre por assim dizer, na superfície, permanece externa, manipula o fisionômico para fazê-lo funcionar como cortina de fumaça? Permita-me a veleidade agora de passar de cientista a poeta! Pense, ao pensar nessa espécie de disfarce, na natureza dissimulada dos biombos, dos gestos rituais para o preparo de um cachimbo de ópio (resvalei para os chineses, não importa), nas engenhosas silenciosas portas (ou paredes!) corrediças de papel de arroz (volto aos japoneses com sua arquitetura escancaradamente dissimulada) , em suma: pense em tudo isso e pense mais; pense em como irão funcionar essas possibilidades ainda em aberto: como uma máscara de infinitos recursos onde por trás se há de esconder sempre, em quaisquer circunstâncias... Completo porque não há mesmo outra coisa a fazer: — O japonês, o amarelo, o oriental. — Isso — reforça satisfeito meu informante e encerra a preleção com uma exortação carinhosa: — Assim, não se deixe perturbar pelo fato dos olhinhos de seu vizinho serem azuis, muito menos se abale com o fato de serem redondos! Indo por essa ordem de raciocínio, por que haveria de espantá-lo a circunstância de estarem tais olhos embutidos numa face rosada e provavelmente (daqui de longe não posso afirmar com segurança) pintalgada de sardas? e (veja que a nada temo, que nada evito em minha descrição), circundada por cabelos vermelhos encaracolados e, vou mais longe, vou mais longe, tudo isso sustentado por uma coluna vertebral e mais duas pernas que, somadas, totalizam um conjunto de pelo menos metro e noventa e lá vai pedrada? E se eu nada temo, por que iria você se perturbar? Siga o meu exemplo, olhe em frente, no sentido literal e figurado do termo porque ambos se ajustam à situação. Olhe em frente e fique alerta: alerta sim, mas para o significado oculto de tudo isso, a significação subjacente. Em suma, analise com isenção e livre de paixões esse curioso espaço que proveitosamente se abre à nossa frente para o nosso mútuo regozijo intelectual. Observe nele a rigorosa nãocoincidência entre a imagem média do japonês comum e a rica e complicada configuração de variegadas cores que se movimenta para lá da cerca-viva de azaleias! E garanto que se você estiver descansado e livre de preconceito, se o tinto não lhe tiver subido à cabeça, saberá sem dúvida chegar à conclusão correta. Uma pausa se dependura no ar parado como bicho preguiça. Migalhas de pão e salpicos de molho e vinho sujaram a toalha. Meu amigo e informante não teme a interrupção de nossa amizade. É antiga como o bairro, tem seus hábitos, seus desacordos que sempre voltam, alguns mais profundos e definitivos do que esse, como a estória da contra-revolução à qual meu parceiro de mesa sempre tira o aposto com a teatralidade de quem desembainha a espada e separa de golpe uma cabeça do tronco. Ele sem dúvida foi talhado para as situações absolutas e o que irá permanecer é a sua lógica de ferro, sua lógica fechada de algemas, perfeita como a circunferência do olho azul que distingo entre uma azaleia e outra, saltando espantado no puro amarelo do verão. Disse que minha qualidade de contra-informante nascia e se desenvolvia a partir da informação, prestada pelo meu companheiro de almoço de domingo. Isso é verdade. Todavia não disse que ultrapassada a primeira fase, do diálogo audível, a outra desenvolve-se sempre resistente mas invisível. Minha contra-informação como o subsolo de meu terreno tem um tipo de porosidade que a permite se mover perpetuamente e mover aquilo que sustenta. O bairro, o município e o mundo, as fortificações em que me apóio vogam docemente, talvez não resistam, mas disso eu gosto. Isso é a razão. Isso é comigo. Me abro reflexivamente sem forças, cedo porque minha formação é como essa terra preta do bairro, não presta, não edificará cidades ou códigos. Não ficará.

  • "Feliz Aniversário" de Clarice Lispector

    A FAMÍLIA FOI POUCO a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeites de paetês e um drapejado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados — e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata. Tendo Zilda — a filha com quem a aniversariante morava — disposto cadeiras unidas ao longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. “Vim para não deixar de vir”, dissera ela a Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os paetês. Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como Zilda — a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante —, e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca aberta. E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos. Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de papel colorido e copos de papelão alusivos à data, espalhara balões sugados pelo teto; em alguns estava escrito “Happy Birthday!”, em outros “Feliz Aniversário!”. No centro havia disposto o enorme bolo açucarado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço, encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos brincarem no vizinho para que não desarrumassem a mesa. E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-colônia para disfarçar aquele cheiro de guardado — sentara-a à mesa. E desde as duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa. De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa um ou outro balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela angústia muda: quando acompanhava, fascinada e impotente, o voo da mosca em torno do bolo. Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema. Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de estar sentada defronte da concunhada de Olaria — que cheia das ofensas passadas não via um motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema — entraram enfim José e a família. E mal eles se beijavam, a sala começou a ficar cheia de gente, que ruidosa se cumprimentava como se todos tivessem esperado embaixo o momento de, em afobação de atraso, subir os três lances de escada, falando, arrastando crianças surpreendidas, enchendo a sala — e inaugurando a festa. Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre. Estava era posta à cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra, imponente e morena. Parecia oca. — Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho agora que Jonga tinha morrido. Oitenta e nove anos, sim senhora! disse esfregando as mãos em admiração pública e como sinal imperceptível para todos. Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais oficial. Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde. Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim senhor! disseram alguns sorrindo timidamente. — Oitenta e nove anos! ecoou Manoel, que era sócio de José. — um brotinho!, disse espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua esposa. A velha não se manifestava. Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactus — nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para os seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os presentes, amarga, irônica. — Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a esposa. A velha não se manifestava. Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras, eles riam inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo. — Não senhor! Respondeu José com falsa severidade, hoje não se fala em negócios! — Está certo, está certo! recuou Manoel depressa, olhando rapidamente para sua mulher, que longe estendia um ouvido atento. — Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe! Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo inteiro — ela era a mãe. A aniversariante piscou os olhos. E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam, enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava escrito “89”. Mas ninguém elogiou a ideia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não estariam pensando que fora por economia de velas — ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa, que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais hesitantes ou surpreendidos, “Vamos! todos de uma vez!” — e todos de repente começaram a cantar alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Como não haviam combinado, uns cantaram em português e outros em inglês. Tentaram então corrigir: e os que haviam cantado em inglês passaram a português, e os que haviam cantado em português passaram a cantar bem baixo em inglês. Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa, meditava como junto de uma lareira. Escolheram o bisneto menor, que, debruçado no colo da mãe encorajadora, apagou a chama com um único sopro cheio de saliva! Por um instante bateram palmas à potência inesperada do menino, que, espantado e exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com o dedo pronto no comutador do corredor — e acendeu a lâmpada. — Viva mamãe! — Viva vovó! — Viva D. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido. — Happy birthday! — gritaram os netos do Colégio Bennett. Bateram ainda algumas palmas ralas. A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco. — Parta o bolo, vovó! Disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! Assegurou incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: parta o bolo, vovó! E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina. — Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se estava escandalizada ou agradavelmente surpreendida. Estava um pouco horrorizada. — Um ano atrás ela era capaz de subir essas escadas com mais fôlego do que eu, disse Zilda amarga. Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação, cada um para a sua pazinha. Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. As crianças pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam a distribuição com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda. E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado? E por assim dizer a festa estava terminada. Cordélia olhava ausente para todos, sorria. — Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José radiante. — Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador, sem olhar a esposa que não o desfitava. Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração passou-lhe rápido pelos músculos da cara. — Hoje é dia da mãe! — disse José. Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de Coca-Cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou. Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu coração. Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada, cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. O desprezo pela vida que falhava. Como?! Como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos, lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão. — Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! gritou ela, passada de vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. — Mamãe, que é isso! disse baixo, angustiada. A senhora nunca fez isso! acrescentou alto para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quando ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma criança. — Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita para todos. Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora crescidos — provavelmente já além dos cinquenta anos, que sei eu! —, os meninos ainda conservavam os traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos — ainda mais fracos e mais azedos — haviam escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles colares falsificados de mulher que na hora não aguenta a mão, aquelas mulherezinhas que casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as orelhas cheias de brincos — nenhum, nenhum de ouro! A raiva sufocava. — Me dá um copo de vinho! disse. O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão. — Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosamente a neta roliça e baixinha. — Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! Me dá um copo de vinho, Dorothy!, ordenou. Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, como máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida, os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E olhavam impassíveis. Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas dois dedos no copo. Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade. Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera, como não mexeu no copo. Seu olhar estava fixo, silencioso como se nada tivesse acontecido. Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e risadas. A nora de Olaria, que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua cadeira reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um drapejado, a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o que não era moda coisa nenhuma, não passava era de economia. Examinando distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para experimentar. E por assim dizer, de novo a festa estava terminada. As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com um sorriso amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já incontroláveis, gritavam cheias de vigor. Umas já estavam de cara imunda; as outras, menores, já molhadas; a tarde caía rapidamente. E Cordélia? Cordélia olhava ausente, com um sorriso estonteado, suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com uma curiosidade negligente, indicando-a de longe com a cabeça, mas também não responderam. Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranquilidade da noite, as crianças começavam a brigar. Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de Copacabana, sem ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso. — Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e sacudindo os farelos da saia. Vários se ergueram sorrindo. A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu aquelas palavras propositadamente atropeladas que lhe diziam tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão passado: a noite já viera quase totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já estavam histéricas. — Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas profundezas. Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da porta ainda a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia ser: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez que era a sua última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria apenas o que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta. Porém, nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhou-a estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu — enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante, enfim, agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar. Mas a esse novo olhar — a aniversariante era uma velha à cabeceira da mesa. Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo, a nora seguiu-o espantada. — Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe, pigarreou José lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos. — Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais lenta riu sem achar graça. — Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa. Nós temos esse grande privilégio, disse distraído enxugando a palma úmida das mãos. Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca se sabendo ao certo o que dizer, José esperando de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso. Que não vinha. Que não vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta nessas horas! — José enxugou a testa com o lenço —, como Jonga fazia falta nessas horas! Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de mãe era duro de suportar: José enxugou a testa, heroico, risonho. E de repente veio a frase: — Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia, encontrando, assim, sem mais nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que vem, hein?, repetiu com receio de não ser compreendido. Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano. — No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o filho Manoel, aperfeiçoando o espírito do sócio. Até o ano que vem, mamãe! e diante do bolo aceso! disse ele bem explicado, perto de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de súbito cacarejou um riso frouxo, compreendendo a alusão. Então ela abriu a boca e disse: — Pois é. Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José gritou-lhe emocionado, grato, com os olhos úmidos: — No ano que vem nos veremos, mamãe! — Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada. Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo. As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A nora de Olaria deu um cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata. As escadas eram difíceis, escuras, incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia menos dia, e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as noras — pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranquilidade fresca da rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio. Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram rapidamente. Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns abotoavam os casacos das crianças, olhando o céu à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom e dizer aquela palavra a mais — que palavra? Eles não sabiam propriamente, e olhavam-se sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se separar, andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão. — Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão com vigor efusivo, os cabelos ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era gordo, pensaram, precisava tomar cuidado com o coração. Até o ano que vem! gritou José eloquente e grande, e sua altura parecia desmoronável. Mas as pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro. Além de alguns pensarem que felizmente havia mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escuro da rua, pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda, mas eles sinceramente nada podiam fazer a respeito: “Pelo menos noventa anos”, pensou melancólica a nora de Ipanema. “Para completar uma data bonita”, pensou sonhadora. Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, ereta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério. "Feliz Aniversário" integra a coletânea "Laços de Família" , publicada em 1960.

  • O vampiro de Curitiba de Dalton Trevisan

    (§1) AI, ME DÁ VONTADE  até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo, beijo de virgem é mordida de bichocabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz. É uma que molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai, eu morro só de olhar para ela, imagine então se. Não imagine, arara bêbada. São onze da manhã, não sobrevivo até à noite. Se fosse me chegando, quem não quer nada — ai, querida, é uma folha seca ao vento — e encostasse bem devagar na safadinha. Acho que morria: fecho os olhos e me derreto de gozo. Não quero do mundo mais que duas ou três só para mim. Aqui diante dela, pode que se encante com o meu bigodinho. Desgraçada! Fez que não me enxergou: eis uma borboleta acima de minha cabecinha doida. Olha através de mim e lê o cartaz de cinema no muro. Sou eu nuvem ou folha seca ao vento? Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem no coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria pendurá-la cabeça para baixo, esvaída em sangue. (§2) Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar a carótida de uma por uma. Até lá enxugo os meus conhaques. Por causa de uma cadelinha como essa que aí vai rebolando-se inteira. Quieto no meu canto, ela que começou. Ninguém diga sou taradinho. No fundo de cada filho de família dorme um vampiro — não sinta gosto de sangue. Eunuco, ai quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, desgraçado. Um anjo pode dizer amém! Muito sofredor ver moça bonita — e são tantas. Perdoe a indiscrição, querida, deixa o recheio do sonho para as formigas? O, você permite, minha flor? Só um pouquinho, um beijinho só. Mais um, só mais um. Outro mais. Não vai doer, se doer eu caia duro aos seus pés. Por Deus do céu não lhe faço mal — o nome de guerra é Nelsinho, o Delicado. Olhos velados que suplicam e fogem ao surpreender no óculo o lampejo do crime? Com elas usar de agradinho e doçura. Ser gentilíssimo. A impaciência é que me perde, a quantas afugentei com gesto precipitado? Culpa minha não é. Elas fizeram o que sou — oco de pau podre, onde floresce aranha, cobra, escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no espelhinho da bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre cristão por que é então? Olhe as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de se coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda. Que me arranhasse o corpo inteiro, vertendo sangue do peito. Aqui jaz Nelsinho, o que se finou de ataque. Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito que eu? Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido. É das tais que se divertem a seduzir o adolescente. Toda de preto, meia preta, upa lá lá. Órfã ou viúva? Marido enterrado, o véu esconde as espinhas que, noite para o dia, irrompem no rosto — o sarampo da viuvez em flor. Furiosa, recolhe o leiteiro e o padeiro. Muita noite revolve-se na cama de casal, abana-se com leque recendendo a valeriana. Outra, com a roupa da cozinheira, à caça de soldado pela rua. Ela está de preto, a quarentena do nojo. Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato! (§3) Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida, não faça isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atraio pobre rapaz que se deite com a mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama — acho que ficaria inibido. No fundo, herói de bons sentimentos. Aquele tipo do bar, aconteceu com ele. Esse aí um dos tais? Puxa, que olhar feroz. Alguns preferem é o rapaz, seria capaz de? Deus me livre, beijar outro homem, ainda mais de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que embebeda o colibri e enraivece o vampiro. Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de pluma, pena e arminho — rasgando com os dentes, deixá-la com os cabelos do corpo. O bracinho nu e rechonchudo — se não quer por que mostra em vez de esconder? —, com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho. Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o famoso bordel. Todas de azul e branco — ó mãe do céu! — desfilando com meia preta e liga roxa no salão de espelhos. Não faça isso, querida, entro em levitação: a força dos vinte anos. Olhe, suspenso nove centímetros do chão, desferia voo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique velho depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba branca. Não se iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo mais com a ducha fria, a cantárida, o anel mágico — conheci cada pai de família! Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de retratos? Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca perdoaria: o menino que marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora uma foto na revista do dentista. Ora na carta a uma viuvinha de sétimo dia. Imagine o susto, a vergonha fingida, as horas de delírio na alcova — à palavra alcova um nó na garganta. (§4) Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a safadinha: banho de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho arregalado no primeiro varão. Lá envelhece, cotovelo na almofada, a solteirona na sua tina de formol. Por que a mão no bolso, querida? Mão cabeluda do lobisomem. Não olhe agora. Cara feia, está perdido. Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras. Oxigenada, a sobrancelha preta — como não roer unha? Por ti serei maior que o motociclista do Globo da Morte. Deixa estar, quer bonitão de bigodinho. Ora, bigodinho eu tenho. Não sou bonito, mas sou simpático, isso não vale nada? Uma vergonha na minha idade. Lá vou eu atrás dela, quando menino era a bandinha do Tiro Rio Branco. Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua de Átila — onde pisa, a grama já não cresce. No braço não sente a baba do meu olho? Se existe força do pensamento, na nuca os sete beijos da paixão. Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração de andorinha. A loira, tonta, abandona-se na mesma hora. O morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe do céu, até as moscas instrumento do prazer — de quantas arranquei as asas? Brado aos céus: como não ter espinha na cara? (§5) Eu vos desprezo, virgens cruéis. A todas poderia desfrutar — nem uma baixou sobre mim o olho estrábico de luxúria. Ah, eu bode imundo e chifrudo, rastejariam e beijavam a cola peluda. Tão bom, só posso morrer. Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de Quéops, Quéfren e Miquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda, á Deus. Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na danação dos vinte anos. Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo, pregá-las na nuca? (§6) Se o cego não vê a fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a tua agulha de fogo. Não mais cão sarnento atormentado pelas pulgas, que dá voltas para morder o rabo. Em despedida — á curvas, ó delícias — concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no braseiro — os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo — beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz.

  • Quer Ser um Escritor Original? Tenha seu Blog Privado!

    Eu confesso que tenho outro blog que escrevo há décadas, mas que é inacessível. Nele estão desde minha experiência de vida, leituras "filosóficas", meus textos e diversos truques para simplificar a vida de um escritor. É minha memória exterior, meu banco de dados. Muito que uso neste blog, vem desse outro blog e foram escrita há décadas. Por Que Todo Escritor Precisa de um "Blog" Privado para desenvolver a Originalidade? A originalidade  não é um raio que cai do céu, mas o fruto do pensamento transversal . Em vez de seguir caminhos óbvios dentro de uma única área, a inovação surge ao conectar ideias de campos distintos. Essa habilidade de cruzar fronteiras do conhecimento revela novas perspectivas e soluções verdadeiramente inéditas, transformando o familiar em algo surpreendente. Mas como cultivar essa transversalidade? A resposta pode estar na criação de uma memória exterior : o blog privado do escritor Tenha um Registro Confiável de Suas Referências Literárias e Culturais Creio que é sempre melhor dedicar mais tempo à escrita e ao aperfeiçoamento do texto do que à pesquisa. Mas a pesquisa é fundamental para um escritor! Não há dúvidas quanto a isso, mas ela pode ser feita em um tempo diferente: Quando estiver lendo um livro, assistindo a um vídeo interessante de um filósofo no YouTube, ou lendo uma notícia na imprensa, aproveite para anotar o que lhe chamou a atenção. Isso pode ser tanto em relação às técnicas de escrita quanto ao conteúdo. Tudo isso pode virar material e, certamente, lhe fornecerá um amplo repertório cultural e intelectual. Aproveite Seu Blog para Fazer uma Coleção de Personagens, Cenas, Dialógos, etc. que vivenciou. Para usar aonde? Realmente eu não sei. Mas se você tiver um bom início de cena, você vai achar onde usá-lo. Assim como um bom personagem. Vou citar uma etapa de meu próprio processo criativo como exemplo: Há alguns anos, vi um senhor saindo do Banco Bradesco de Limeira (daquela agência em frente à praça central) vestindo um terno marrom com colete e gravata de corte impecável, mas de alguma forma, deslocado no tempo. Ele representava uma quebra na linha temporal. Não era daquela época. De onde veio aquele idoso? Para onde irá? De toda forma, é um ótimo personagem a ser construído: tem carne e osso, e algo que o torna diferente. Essa é uma forma excelente de começar a criar um personagem: ele já te entrega algo antes mesmo de você começar a escrever. Eu tenho centenas de protopersonagens em meus arquivo de protopersonagens, ou seja, personagens em construção. Eu não faço ideia em quais contos vou utilizá-los. Mas a questão não é essa na verdade. Essas situações de vivências são os gatilhos para criar criativamente. Hoje estou escrevendo o conto do "Velho de Terno Marrom". O tema é a questão do "desencaixe" ou "estranhamento" na sociedade de hoje Aprenda e Anote as Contribuições de Outros Autores Nomeei um post de "Uma ajuda de Sylvia Plath em A Redoma de Vidro ". O título foi bastante enigmático para mim, pois só havia uma citação. Demorei um pouco a identificar qual a ajuda estava ali. "Eu tinha lido um dos livros da Sra. Guinea na biblioteca pública — por algum motivo a biblioteca da universidade não tinha nenhum — e ele estava abarrotado de perguntas longas e cheias de suspense, tipo “Seria Evelyn capaz de perceber que Gladys conhecera Roger no passado? — perguntava-se fervorosamente Hector” e “Como poderia Donald casar-se com ela quando sabia da pequena Elsie, escondida com a Senhorita Rollmop numa distante fazenda no interior? — indagava Griselda a seu frio travesseiro sob a luz do luar”. Esses livros renderam a Philomena Guinea, que depois me diria que fora uma péssima aluna na faculdade, milhões e milhões de dólares." A questão é que o narrador está antecipando a história, direcionando a atenção do leitor com intervenções de caráter explicativo. Há uma quebra de voz: apesar de serem os personagens que estão dizendo, claramente o narrador está se dirigindo ao leitor para costurar seu enredo. Antecipar a história e explicá-la nunca é bom: aponta para uma falha na construção da narrativa ou supõe a incapacidade do leitor acompanhar o enredo. Também não é uma boa forma de construir a personagem porque retira sua alma, a personagem é visivelmente uma marionete na mão do autor. Mas isso não quer dizer que personagens não devem se interrogar. A questão é quem e para que está interrogando-se. 👉 Neste sobre a técnica de escrita de Hemingway , você pode aprofundar essa discussão. Faça uma Coleção de Trechos Temáticos Organizados É para usar o Ctrl+C, Ctrl+V? Ninguém vai culpá-lo se usar! Quem não usa? Mas a intenção é outra: ter recursos de escrita à mão. A descrição da sua personagem não ficou boa? Dê uma olhada em seu acervo de "descrições de personagens"! Sua ambientação de cena ficou uma "bosta"? Consulte seu acervo de ambientação de cenas. Peça reforço ao seu banco de dados! Como exemplo, vou citar alguns trechos que classifiquei como descritores de personagens: Um homem rechonchudo de meia-idade, com olhos francos e azuis que conseguiam dar uma impressão de simpatia, embora, de fato, não apresentassem expressão alguma. 👉 Em O Sono Eterno , de Raymond Chandler. Marcel chegou ao barco, os olhos azuis cheios de surpresa e assombro, com tantos reflexos quanto o rio. Olhos famintos, ávidos, desprotegidos. Sobre a expressão inocente e absorta, caíam grossas sobrancelhas, selvagens como as de um camponês. Sua rusticidade era atenuada pela testa luminosa e pelos cabelos sedosos. A pele também era frágil; o nariz e a boca, vulneráveis e transparentes; mas as mãos de camponês, como as sobrancelhas, denunciavam sua força. 👉 Em Delta de Vênus , de Anaïs Nin. Use Exemplos Negativos, Inclusive de Autores Que Não Gosta Eu odeio as cenas clássicas nas quais o narrador descreve o ambiente antes da ação. Para que isso? Descreva o ambiente em pequenas doses, no meio da ação. Assim, é o indubitavelmente certo! (Brincadeira, não há certezas na literatura e você pode arrasar de diversas maneiras.) Há algumas semanas, em um post em que discuti o tema 👉 Mostrar e/ou Contar  como técnica narrativa, precisei de uma cena clássica. Você acha que fui para minha biblioteca poeirenta e desorganizada procurar? Jamais! Fiz uma busca em meu blog: "ambientação de cena chata". Ela retornou esse pequeno trecho: "Em casa de Gavrila Afanássievitch, um cubículo estreito com uma só janelinha ficava à direita do vestíbulo. Nele havia uma cama simples, com cobertor de baeta, e, na frente, uma mesinha de pinho, com uma vela de sebo acesa e um caderno de música aberto. Pendiam da parede um velho uniforme azul e um tricórnio da mesma idade; em cima deste, estava fixado com três pregos um quadrinho barato representando Carlos XII a cavalo. Sons de flauta ressoavam nessa tranquila morada. O mestre de danças prisioneiro, seu solitário inquilino, de barrete e roupão chinês, adoçava o tédio da noite de Inverno ensaiando antigas marchas suecas, que lhe recordavam os tempos alegres da mocidade. Tendo dedicado duas horas a este exercício, o sueco desmontou a flauta, guardou-a no estojo e começou a despir-se. Nesse momento, ergueu-se a tranqueta da sua porta, entrando no quarto um jovem bonito e alto, de uniforme. O sueco parou surpreendido em frente do hóspede casual. -- Tu não me reconheceste, Gustav Adamitch -- disse o jovem visitante, a voz comovida. -- Não te lembras do menino a quem ensinaste o artigo da língua sueca, e com quem quase fizeste um incêndio neste mesmo quartinho, ao atirar com um canhãozinho de brinquedo. ..." 👉 Em A Dama de Espadas , de Aleksandr Puchkin. Na literatura, você precisa de todos os recursos à mão. Certamente precisará de cenas cujo início seja a ambientação mais descritiva. Por isso, vale a pena dar atenção às oportunidades que autores menos admirados por você oferecem. Nenhum Bruxo Conta a Bruxaria Resumindo, tenha seu espaço pessoal para desenvolver suas ideias e conectá-las transversalmente. Mas não conte para ninguém: se contar não é mais original. Espere o texto pronto. A originalidade não é um raio que cai do céu, mas o fruto do pensamento transversal. Ao invés de seguir caminhos óbvios dentro de uma única área, a inovação surge ao conectar ideias de campos distintos. Essa habilidade de cruzar fronteiras do conhecimento revela novas perspectivas e soluções verdadeiramente inéditas, transformando o familiar em algo surpreendente. Dicas para seu "Blog" Particular: Crie "fichamentos" do livro em questão para ter uma uma visão contextualizada e aprofundada Crie arquivos transversais por tema:  "construção de personagens", "diálogos", "ambientação". Seja simples e eficiente:  Não perca tempo organizando o texto. Você não está realmente escrevendo um post público. Está alimentando sua memória externa, seu banco de dados. Escolha palavras-chave eficientes:  Elas devem funcionar bem quando seu banco de dados crescer. O exemplo "Descritores de Personagens" é bom, mas pode ser pouco específico. Hoje, eu provavelmente usaria "Descritores de Personagens - Características Físicas". Onde Hospedar seu "Blog"? O meu está hospedado no WordPress ( https://wordpress.com/ ). Escolhi por ser o maior serviço de hospedagem de blog, pela esperança de que permanecesse funcionando por longo tempo e por ser gratuito. Meu blog particular, se quiser conhecer, está em notas.revisaodialogal.com.br . O acesso é restrito.

  • Biografia de J. M. Cotzee

    Cidade do Cabo John Maxwell Coetzee nasceu em 1940 na e passou seus primeiros anos em meio a constantes mudanças e deslocamentos. Cresceu observando as transformações sociais de sua terra, o que marcaria sua visão de mundo. Estudou na Universidade da Cidade do Cabo, onde cursou inglês e matemática, construindo uma base que sempre se pautou na clareza e na ordem dos fatos. Posteriormente, viajou para os Estados Unidos para realizar seu doutorado, aprofundando-se em literatura e linguística. Ao retornar à África do Sul, atuou como professor, enquanto trabalhava também como programador, experiências que influenciaram sua maneira de contar histórias. Viveu os dias do apartheid com a consciência crítica do que se passava e, mais tarde, escolheu a Austrália como novo lar. Sua vida reflete uma busca constante por registrar o ocorrido sem excessos e sem ornamentos. A obra de Coetzee espelha essa postura: os relatos se apresentam nos moldes de um compromisso com os fatos e com a sequência da experiência vivida. Suas frases são curtas e diretas, e o verbo assume o papel de condutor da narrativa, sem se perder em adornos. O professor que se torna escritor mantém a disciplina do ensino e do escrever, fazendo do relato uma memória viva dos eventos. A experiência pessoal, enriquecida pelo exílio e pela passagem de tempos difíceis, alinha-se à ordem dos acontecimentos que se sucedem sem desvios. A escrita de Coetzee oferece ao leitor um texto marcado pela economia de palavras e pela fidelidade à verdade dos fatos. Cada palavra pesa a realidade e cada linha registra o ocorrido com rigor. Não há espaço para o fluxo de metáforas longas ou excessos retóricos; o autor apresenta a narrativa como um testemunho silencioso, porém firme, do que foi vivido. Sua obra é uma demonstração de que a clareza e a simplicidade podem construir um relato robusto sem recorrer a artifícios inúteis. A trajetória acadêmica e pessoal de Coetzee, que se estende dos tempos de aulas na Cidade do Cabo ao exercício do ensino na Austrália, dialoga com as experiências que vivi sob sistemas opressores e em contextos de mudança. Essa vivência transparece em cada texto, em que o exílio se torna um filtro que clarifica e organiza a realidade. Ao contar os fatos da maneira mais direta possível, o autor constrói uma narrativa que privilegia o ocorrido, definindo, por meio do estilo austero, a essência do que ele registra. Coetzee demonstra que a palavra escrita pode ser um instrumento de memória e de denúncia, revelando, sem exageros, os contornos do tempo e do espaço em que se formou. A literatura se torna, assim, uma continuidade de sua própria existência, onde cada fato é contado com precisão. O relato dos eventos não se perde em artifícios; ele segue a ordem natural do acontecer, mostrando a sinceridade e a constância de um olhar atento à realidade. Essa postura, que permeia toda a obra do autor, confere a seus textos o caráter de um registro puro dos tempos vividos, permitindo que o leitor se aproxime dos fatos com uma compreensão limpa e direta. Veja uma análise da prosa de Coetzze neste post Entrevista com Coetzze. Use as legendas com tradução automática, se precisar. 3 de suas principais obras resenhadas Desonra mostra a queda de um professor de literatura. Ele se envolve em um caso com uma aluna. O escândalo se revela sem rodeios. A reputação se desmancha rapidamente. O homem perde seu posto e sua honra. Ele opta pelo exílio como saída. Os atos se sucedem um após o outro. Cada passo confirma a direção do declínio. O relato apresenta os fatos com precisão. A narrativa encerra a trajetória com clareza. Esperando os Bárbaros descreve o encontro em uma fronteira indefinida. O poder se impõe na delimitação dos atos. O conflito se anuncia na tensão do limite. Os fatos se acumulam na medida em que o confronto se aproxima. A ação se desdobra sem desperdício. Cada evento reforça a presença da autoridade. O confronto se intensifica com a aproximação dos lados opostos. O registro dos atos é marcado pela ordem e pela firmeza. A narrativa delimita o espaço do embate com rigor. O relato consolida o encontro de forças de forma direta. Vida e Tempos de Michael K relata a jornada de um homem em busca de um destino. Ele parte e segue por um caminho marcado pelos acontecimentos. O percurso se desenha com os fatos que se acumulam. Os eventos continuam sem interrupção e sem exageros. Cada etapa é contada com a clareza dos atos vividos. O homem enfrenta o curso dos dias com resignação. A viagem acontece sem artifícios e com ordem no relato. O caminho se define à medida que os momentos se encadeiam. O final da jornada surge com a marca do tempo vivido. A narrativa registra cada passo com precisão e sobriedade.

  • Lygia Fagundes Telles: As formigas.

    Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima. — É sinistro. Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes, com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina. — Pelo menos não vi sinal de barata — disse minha prima. A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho. — É você que estuda medicina? — perguntou soprando a fumaça na minha direção. — Estudo direito. Medicina é ela. A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho. — Vou mostrar o quarto, fica no sótão — disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. — O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles. Minha prima voltou-se: — Um caixote de ossos? A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e pondo-se de joelhos puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada. — Mas que ossos tão miudinhos! São de criança? — Ele disse que eram de adulto. De um anão. — De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados… Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí — admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. — Tão perfeito, todos os dentinhos! — Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente, extra. Telefone, também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa — recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: — Não deixem a porta aberta senão meu gato foge. Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada. Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa. — Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele. Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até a madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria. — De onde vem esse cheiro? — perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. — Você não está sentindo um cheiro meio ardido? — É de bolor. A casa inteira cheira assim — ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama. No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, Tem um anão no quarto!, mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho. — Que é que você está fazendo aí? — perguntei. — Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo? Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar. — São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida — estranhei. — Só de ida. Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama. — Está debaixo dela — disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico. — Preto de formiga! Me dá o vidro de álcool. — Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora. — Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui. Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e, como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho. — Esquisito. Muito esquisito. — O quê? — Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui? — Deus me livre, tenho nojo de osso! Ainda mais de anão. Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho. Voltei a sonhar aflitivamente, mas dessa vez foi o antigo pesadelo com os exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto. Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei. — E as formigas? — Até agora, nenhuma. — Você varreu as mortas? Ela ficou me olhando. — Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu? — Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo… Mas então, quem?! Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava. — Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo. Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto, mas ela estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia Flor de Maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho, que competia nas repetições com o tal sonho da prova oral, nele eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica. — Elas voltaram. — Quem? — As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo. A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta. — E os ossos? Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo. — Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta, senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formigas, você se lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas se trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão… Estão se organizando. — Como, se organizando? Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol. — Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando o seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e… Venha ver! — Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso? Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas desapareciam com a luz do dia. Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro. — Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia — ela avisou. O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso. — Estou com medo. Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir. — Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam? Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, Acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga. — Voltaram — ela disse. Apertei entre as mãos a cabeça dolorida. — Estão aí? Ela falava num tom miúdo, como se uma formiguinha falasse com sua voz. — Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena movimentação. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava… — O que foi? Fala depressa, o que foi? Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama. — Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto já está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui. — Você está falando sério? — Vamos embora, já arrumei as malas. A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados. — Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim? — Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta! — E para onde a gente vai? — Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto. Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito? No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.

  • Resenha: Desonra de J.M. Coetzee

    J.M. Coetzee, com sua prosa afiada e implacável, nos entrega em Desonra  (1999) um romance que é tanto um mergulho sombrio na alma humana quanto um doloroso retrato da África do Sul pós-apartheid. A obra, que lhe rendeu o segundo Booker Prize, é um estudo incômodo sobre poder, vulnerabilidade e a complexa teia da culpa e do perdão. A trama centra-se em David Lurie, um professor universitário de cinquenta e poucos anos, divorciado e com uma vida acadêmica e pessoal estagnada. Ele é um homem de intelecto apurado, mas com uma crescente sensação de distanciamento do mundo contemporâneo e de seus valores. Sua existência monótona e complacente é quebrada quando ele se envolve em um caso com Melanie Isaacs, uma de suas alunas. O relacionamento, marcado pelo abuso de poder e pela indiferença fria de David às implicações de suas ações, é descoberto. A Decadência de David Lurie: Do Intelectual ao Despossuído A decadência de David  não é súbita, mas um processo gradual e doloroso, desencadeado por suas próprias escolhas e acelerado pelas circunstâncias. Inicialmente, sua desonra  manifesta-se no âmbito profissional. Diante da acusação de má conduta sexual, David recusa-se a se submeter aos rituais de contrição exigidos pela universidade. Ele se agarra a uma noção de integridade pessoal (ou talvez, de arrogância) que o impede de admitir a culpa nos termos da instituição. Essa recusa o leva à demissão, um primeiro passo para a perda de seu status  social e intelectual. Ele perde não apenas o emprego, mas a plataforma de onde exercia sua influência e sua identidade como acadêmico respeitado. Em busca de refúgio e, talvez, de uma nova forma de existência, David se muda para a fazenda isolada de sua filha, Lucy, no interior do Cabo Oriental. Aqui, sua decadência assume novas dimensões. O ambiente rural é um contraste gritante com sua vida urbana e intelectualizada. David, acostumado ao conforto e à segurança, é subitamente confrontado com a dureza da vida no campo, a vulnerabilidade e a incerteza. A casa de Lucy é modesta, a segurança é precária, e David se sente cada vez mais deslocado e inútil. O ponto de inflexão mais brutal de sua degradação ocorre quando a fazenda é invadida por três homens negros. David é agredido, roubado e, testemunha o estupro de Lucy. Este evento não é apenas um ato de violência física; é um ato simbólico que despoja David do que resta de sua dignidade e de sua capacidade de proteger sua filha. A inação e a passividade forçadas diante da brutalidade o deixam em um estado de choque e impotência. É nesse momento que David atinge o fundo do poço, confrontado com a verdade de que não pode controlar o mundo ao seu redor, nem mesmo defender aqueles que ama. A reação de Lucy ao trauma, sua relutância em denunciar o crime, e sua decisão de aceitar as consequências do ataque – incluindo a possibilidade de uma gravidez indesejada e a submissão a um arranjo com um vizinho para sua proteção – são o cerne da reflexão de Coetzee sobre a nova África do Sul. David, por sua vez, é forçado a reavaliar suas próprias concepções de justiça, vingança e sobrevivência em um cenário onde as antigas hierarquias de poder foram desfeitas. Sua jornada o leva a trabalhar em um crematório de animais, uma ocupação que simboliza sua própria descida a um nível de existência humilde e desprovido de ambição. Ele se envolve com os corpos dos animais mortos, encontrando uma estranha forma de consolo e propósito na tarefa de dispor deles, um eco de sua própria desolação e a busca por alguma forma de significado em um mundo que perdeu seu sentido. Uma Reflexão Sobre a Condição Humana O que torna Desonra  tão poderoso é a maneira como Coetzee explora a inversão de papéis e a inescapável herança do passado. David, antes um homem de privilégio e controle, é forçado a confrontar sua própria impotência e a barbárie que emerge em um país ainda lutando para se redefinir. A figura de Lucy, com sua aceitação quase resignada do sofrimento, personifica uma forma complexa de reconciliação ou, talvez, de um fardo inescapável. A escrita de Coetzee é ascética, despojada de sentimentalismos, e foca na essência da condição humana. Ele não oferece respostas fáceis, mas sim indagações profundas sobre moralidade, culpa, compaixão e a busca por dignidade em meio à degradação. O final, particularmente marcante e aberto a interpretações, reforça a ideia de que a "desonra" pode ser tanto uma punição quanto um caminho para uma espécie de redenção, ainda que amarga, encontrada na resignação e no serviço aos mais vulneráveis. Desonra  é um livro que provoca, desafia e permanece com o leitor muito tempo depois de sua última página. É uma obra essencial para entender as complexidades da África do Sul contemporânea e, mais universalmente, a capacidade humana de infligir e suportar a dor. Análise das Técnicas de Escrita de Coetzee >>

  • Kafka: A Bofetada da Verdade: A Literatura Nunca Mais Foi a Mesma!

    O Narrador Indiferente: O Truque de Kafka para Chocar (e Viciar) o Leitor E aí, pessoal, tudo certo? Aqui é Ana Amélia, sua carrasca literária favorita. Hoje vamos falar de um pecado que muitos de vocês, aspirantes a Dostoievski de botequim, cometem sem nem piscar: o excesso de sentimento. Aquela necessidade de pegar o leitor pela mão e soletrar cada emoção: "ele ficou triste", "ela sentiu um medo avassalador", "o coração dele batia como um tambor frenético". Parece bom, né? Parece profundo. Mas na verdade, muitas vezes, é só ruído. É tirar do leitor a chance de sentir por conta própria. E se eu dissesse que um dos maiores mestres da angústia literária fazia exatamente o contrário? Ele não descrevia o pavor. Ele o construía com o silêncio, com a distância, com a faca fria da objetividade. Senhoras e senhores, vamos ao consultório do Dr. Franz Kafka. Estudo de Caso: Uma Bicada nos Pés (e na Alma) Antes de eu começar a teorizar, quero que vocês leiam uma coisinha. É um microconto de Kafka chamado "O Abutre". Leiam com atenção. Sem pressa. Sintam o desconforto se instalar. Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava-me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre. – É que estou sem defesa – respondi. – Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados. – Mas deixar-se torturar dessa maneira! – disse o senhor. – Basta um tiro e pronto! – Acha que sim? – disse eu. – Quer o senhor disparar o tiro? – Certamente – disse o senhor. – É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue aguentar meia hora? – Não sei lhe dizer. – respondi. Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei: – De qualquer modo, vá, peço-lhe. – Bem – disse o senhor. – Vou o mais depressa possível. O abutre escutara tranquilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue. Ok. Respirem. Perturbador, não? Mas por quê ? A Dissecar o Cadáver: A Genialidade do Narrador Clínico Percebam a jogada de mestre. Em nenhum momento o narrador diz "eu estava apavorado" ou "a dor era insuportável". Ele descreve a tortura com a mesma naturalidade com que descreveria a receita de um bolo. É quase um relatório de autópsia sendo feito no próprio corpo, em tempo real. Essa é a técnica do narrador objetivo , ou como prefiro chamar, o narrador clínico . É uma voz que narra os eventos mais absurdos e grotescos de forma factual, fria e desapaixonada. E é justamente essa frieza que amplifica o horror. O Poder da Indiferença Ao se recusar a julgar ou a sentir pela personagem, o narrador de Kafka espelha a indiferença do próprio universo. Não há condenação do abutre, não há pena do homem. Há apenas o fato: uma criatura está sendo destruída por outra, e um terceiro oferece uma "solução" burocrática e inútil ("Consegue aguentar meia hora?"). A falta de consideração moral torna a cena ainda mais brutal. O absurdo não é um acidente; é a regra do jogo. O Leitor como Cúmplice Quando o texto não entrega a emoção de bandeja, ele cria um vácuo. E adivinhem quem é que preenche esse vácuo? Exatamente, você , o leitor. É você que projeta seu próprio medo, sua própria angústia e seu próprio pânico naquela cena. Kafka não te conta que a situação é desesperadora; ele cria um cenário tão objetivamente terrível que o desespero floresce dentro de você. É uma coparticipação no horror. Muito mais eficaz do que qualquer adjetivo, não acham? Como Aplicar o "Efeito Kafka" no seu Texto (sem precisar de um abutre) "Ok, Ana, entendi. Mas como eu uso isso?". Calma, não precisa transformar todos os seus contos em pesadelos existenciais. A técnica do narrador objetivo é uma ferramenta poderosa que pode ser usada com moderação para criar tensão e impacto. Aqui vão algumas dicas: Mostre, não Qualifique:  Em vez de dizer que um personagem está "nervoso", descreva suas mãos tremendo ao tentar acender um cigarro, o suor na sua testa, o tique em seu olho. Deixe os fatos falarem. Foque na Ação, não na Reação Interna:  Narre o que acontece externamente, de forma precisa. Se um personagem recebe uma notícia terrível, em vez de mergulhar em seus pensamentos, descreva como ele lentamente coloca a xícara de café de volta no pires, com uma precisão que não condiz com a situação. O contraste é tudo. Abrace a Amoralidade da Cena:  Por um momento, suspenda o julgamento. Apenas narre os eventos como uma câmera de segurança, sem dizer o que é "certo" ou "errado". Deixe que a própria brutalidade (ou beleza, ou estranheza) da cena fale por si. No fim, o que Kafka nos ensina é que a verdadeira força da escrita muitas vezes reside no que não  é dito. É sobre confiar na inteligência e na sensibilidade do leitor. É sobre trocar o melodrama barato pelo poder sísmico de um fato bem narrado. Agora vão lá e tentem escrever algo com um pouco mais de frieza e um pouco menos de choro. Vocês podem se surpreender com o resultado. 👉👉 Veja também Comunicado a uma Academia do mesmo autor

  • TRIO EM LÁ MENOR: Conto de Machado de Assis

    I Adagio cantabile Maria Regina acompanhou a avó até o quarto, despediu-se e recolheu-se ao seu. A mucama que a servia, apesar da familiaridade que existia entre elas, não pôde arrancar-lhe uma palavra, e saiu, meia hora depois, dizendo que Nhanhã estava muito séria. Logo que cou só, Maria Regina sentou-se ao pé da cama, com as pernas estendidas, os pés cruzados, pensando. A verdade pede que diga que esta moça pensava amorosamente em dous homens ao mesmo tempo. Um de vinte e sete anos, Maciel — outro de cinquenta, Miranda. Convenho que é abominável, mas não posso alterar a feição das cousas, não posso negar que se os dous homens estão namorados dela, ela não o está menos de ambos. Uma esquisita, em suma; ou, para falar como as suas amigas de colégio, uma desmiolada. Ninguém lhe nega coração excelente e claro espírito; mas a imaginação é que é o mal, uma imaginação adusta e cobiçosa, insaciável principalmente, avessa à realidade, sobrepondo às cousas da vida outras de si mesmas; daí curiosidades irremediáveis. A visita dos dous homens (que a namoravam de pouco) durou cerca de uma hora. Maria Regina conversou alegremente com eles, e tocou ao piano uma peça clássica, uma sonata, que fez a avó cochilar um pouco. No m discutiram música. Miranda disse cousas pertinentes acerca da música moderna e antiga; a avó tinha a religião de Bellini e da Norma , e falou das toadas do seu tempo, agradáveis, saudosas e principalmente claras. A neta ia com as opiniões do Miranda; Maciel concordou polidamente com todos. Ao pé da cama, Maria Regina reconstruía agora tudo isso, a visita, a conversação, a música, o debate, os modos de ser de um e de outro, as palavras do Miranda e os belos olhos do Maciel. Eram onze horas, a única luz do quarto era a lamparina, tudo convidava ao sonho e ao devaneio. Maria Regina, à força de recompor a noite, viu ali dous homens ao pé dela, ouviu-os, e conversou com eles durante uma porção de minutos, trinta ou quarenta, ao som da mesma sonata tocada por ela: lá, lá, lá... II Allegro ma non troppo No dia seguinte, a avó e a neta foram visitar uma amiga na Tijuca. Na volta a carruagem derribou um menino que atravessava a rua, correndo. Uma pessoa que viu isto atirou-se aos cavalos e, com perigo de si própria, conseguiu detê-los e salvar a criança, que apenas cou ferida e desmaiada. Gente, tumulto, a mãe do pequeno acudiu em lágrimas, Maria Regina desceu do carro e acompanhou o ferido até a casa da mãe, que era ali ao pé. Quem conhece a técnica do destino adivinha logo que a pessoa que salvou o pequeno foi um dos dous homens da outra noite; foi o Maciel. Feito o primeiro curativo, o Maciel acompanhou a moça até a carruagem e aceitou o lugar que a avó lhe ofereceu até a cidade. Estavam no Engenho Velho. Na carruagem é que Maria Regina viu que o rapaz trazia a mão ensanguentada. A avó inquiria a miúdo se o pequeno estava muito mal, se escaparia; Maciel disselhe que os ferimentos eram leves. Depois contou o acidente: estava parado, na calçada, esperando que passasse um tílburi, quando viu o pequeno atravessar a rua, por diante dos cavalos; compreendeu o perigo, e tratou de conjurá-lo, ou diminuí-lo. — Mas está ferido — disse a velha. — Cousa de nada. — Está, está — acudiu a moça —; podia ter-se curado também. — Não é nada — teimou ele —; foi um arranhão, enxugo isto com o lenço. Não teve tempo de tirar o lenço; Maria Regina ofereceu-lhe o seu. Maciel, comovido, pegou nele, mas hesitou em maculá-lo. — Vá, vá — dizia-lhe ela; e vendo-o acanhado, tirou-lho e enxugou-lhe, ela mesma, o sangue da mão. A mão era bonita, tão bonita como o dono; mas parece que ele estava menos preocupado com a ferida da mão que com o amarrotado dos punhos. Conversando, olhava para eles, disfarçadamente, e escondia-os. Maria Regina não via nada, via-o a ele, via-lhe principalmente a ação que acabava de praticar, e que lhe punha uma auréola. Compreendeu que a natureza generosa saltara por cima dos hábitos pausados e elegantes do moço, para arrancar à morte uma criança que ele nem conhecia. Falaram do assunto até a porta da casa delas; Maciel recusou, agradecendo, a carruagem que elas lhe ofereciam, e despediu-se até a noite. — Até a noite! — repetiu Maria Regina. Esperou-o ansiosa. Ele chegou, por volta de oito horas, trazendo uma ta preta enrolada na mão, e pediu desculpa de vir assim; mas disseram-lhe que era bom pôr alguma cousa e obedeceu. — Mas está melhor! — Estou bom, não foi nada. — Venha, venha — disse-lhe a avó, do outro lado da sala. — Sente-se aqui ao pé de mim: o senhor é um herói. Maciel ouvia sorrindo. Tinha passado o ímpeto generoso, começava a receber os dividendos do sacrifício. O maior deles era a admiração de Maria Regina, tão ingênua e tamanha, que esquecia a avó e a sala. Maciel sentara-se ao lado da velha, Maria Regina defronte de ambos. Enquanto a avó, restabelecida do susto, contava as comoções que padecera, a princípio sem saber de nada, depois imaginando que a criança teria morrido, os dous olhavam um para o outro, discretamente, e a nal esquecidamente. Maria Regina perguntava a si mesma onde acharia melhor noivo. A avó, que não era míope, achou a contemplação excessiva, e falou de outra cousa; pediu ao Maciel algumas notícias de sociedade. III Allegro appassionato Maciel era homem, como ele mesmo dizia em francês, très répandu ; sacou da algibeira uma porção de novidades miúdas e interessantes. A maior de todas foi a de estar desfeito o casamento de certa viúva. — Não me diga isso! — exclamou a avó. — E ela? — Parece que foi ela mesma que o desfez: o certo é que esteve anteontem no baile, dançou e conversou com muita animação. Oh! abaixo da notícia, o que fez mais sensação em mim foi o colar que ela levava, magní co... — Com uma cruz de brilhantes? — perguntou a velha. — Conheço; é muito bonito. — Não, não é esse. Maciel conhecia o da cruz, que ela levara à casa de um Mascarenhas; não era esse. Este outro ainda há poucos dias estava na loja do Resende, uma cousa linda. E descreveu-o todo, número, disposição e facetado das pedras; concluiu dizendo que foi a joia da noite. — Para tanto luxo era melhor casar — ponderou maliciosamente a avó. — Concordo que a fortuna dela não dá para isso. Ora, espere! Vou amanhã, ao Resende, por curiosidade, saber o preço por que o vendeu. Não foi barato, não podia ser barato. — Mas por que é que se desfez o casamento? — Não pude saber; mas tenho de jantar sábado com o Venancinho Corrêa, e ele conta-me tudo. Sabe que ainda é parente dela? Bom rapaz; está inteiramente brigado com o barão... A avó não sabia da briga; Maciel contou-lha de princípio a m, com todas as suas causas e agravantes. A última gota no cálix foi um dito à mesa de jogo, uma alusão ao defeito do Venancinho, que era canhoto. Contaram-lhe isto, e ele rompeu inteiramente as relações com o barão. O bonito é que os parceiros do barão acusaram-se uns aos outros de terem ido contar as palavras deste. Maciel declarou que era regra sua não repetir o que ouvia à mesa do jogo, porque é lugar em que há certa franqueza. Depois fez a estatística da rua do Ouvidor, na véspera, entre uma e quatro horas da tarde. Conhecia os nomes das fazendas e todas as cores modernas. Citou as principais toilettes do dia. A primeira foi a de Mme. Pena Maia, baiana distinta, très pschutt . A segunda foi a de Mlle. Pedrosa, lha de um desembargador de São Paulo, adorable . E apontou mais três, comparou depois as cinco, deduziu e concluiu. Às vezes esquecia-se e falava francês; pode mesmo ser que não fosse esquecimento, mas propósito; conhecia bem a língua, exprimia-se com facilidade e formulara um dia este axioma etnológico — que há parisienses em toda a parte. De caminho, explicou um problema de voltarete. — A senhora tem cinco trunfos de espadilha e manilha, tem rei e dama de copas... Maria Regina ia descambando da admiração no fastio: agarrava-se aqui e ali, contemplava a gura moça do Maciel, recordava a bela ação daquele dia, mas ia sempre escorregando; o fastio não tardava a absorvê-la. Não havia remédio. Então recorreu a um singular expediente. Tratou de combinar os dous homens, o presente com o ausente, olhando para um, e escutando o outro de memória; recurso violento e doloroso, mas tão e caz, que ela pôde contemplar por algum tempo uma criatura perfeita e única. Nisto apareceu o outro, o próprio Miranda. Os dous homens cumprimentaram-se friamente; Maciel demorou-se ainda uns dez minutos e saiu. Miranda cou. Era alto e seco, sionomia dura e gelada. Tinha o rosto cansado, os cinquenta anos confessavam-se tais, nos cabelos grisalhos, nas rugas e na pele. Só os olhos continham alguma cousa menos caduca. Eram pequenos, e escondiam-se por baixo da vasta arcada do sobrolho; mas lá, ao fundo, quando não estavam pensativos, centelhavam de mocidade. A avó perguntoulhe, logo que Maciel saiu, se já tinha notícia do acidente do Engenho Velho, e contou-lho com grandes encarecimentos, mas o outro ouvia tudo sem admiração nem inveja. — Não acha sublime? — perguntou ela, no m. — Acho que ele salvou talvez a vida a um desalmado que algum dia, sem o conhecer, pode meter-lhe uma faca na barriga. — Oh! — protestou a avó. — Ou mesmo conhecendo — emendou ele. — Não seja mau — acudiu Maria Regina —; o senhor era bem capaz de fazer o mesmo, se ali estivesse. Miranda sorriu de um modo sardônico. O riso acentuou-lhe a dureza da sionomia. Egoísta e mau, este Miranda primava por um lado único: espiritualmente, era completo. Maria Regina achava nele o tradutor maravilhoso e el de uma porção de ideias que lutavam dentro dela, vagamente, sem forma ou expressão. Era engenhoso e no e até profundo, tudo sem pedantice, e sem meter-se por matos cerrados, antes quase sempre na planície das conversações ordinárias; tão certo é que as cousas valem pelas ideias que nos sugerem. Tinham ambos os mesmos gostos artísticos; Miranda estudara direito para obedecer ao pai; a sua vocação era a música. A avó, prevendo a sonata, aparelhou a alma para alguns cochilos. Demais, não podia admitir tal homem no coração; achava-o aborrecido e antipático. Calou-se no m de alguns minutos. A sonata veio, no meio de uma conversação que Maria Regina achou deleitosa, e não veio senão porque ele lhe pediu que tocasse; ele caria de bom grado a ouvi-la. — Vovó — disse ela —, agora há de ter paciência... Miranda aproximou-se do piano. Ao pé das arandelas, a cabeça dele mostrava toda a fadiga dos anos, ao passo que a expressão da sionomia era muito mais de pedra e fel. Maria Regina notou a graduação, e tocava sem olhar para ele; difícil cousa, porque, se ele falava, as palavras entravam-lhe tanto pela alma, que a moça insensivelmente levantava os olhos, e dava logo com um velho ruim. Então é que se lembrava do Maciel, dos seus anos em or, da sionomia franca, meiga e boa, e a nal da ação daquele dia. Comparação tão cruel para o Miranda, como fora para o Maciel o cotejo dos seus espíritos. E a moça recorreu ao mesmo expediente. Completou um pelo outro; escutava a este com o pensamento naquele; e a música ia ajudando a cção, indecisa a princípio, mas logo viva e acabada. Assim Titânia, ouvindo namorada a cantiga do tecelão, admirava-lhe as belas formas, sem advertir que a cabeça era de burro. IV Minuetto Dez, vinte, trinta dias passaram depois daquela noite, e ainda mais vinte, e depois mais trinta. Não há cronologia certa; melhor é car no vago. A situação era a mesma. Era a mesma insu ciência individual dos dous homens, e o mesmo complemento ideal por parte dela; daí um terceiro homem, que ela não conhecia. Maciel e Miranda descon avam um do outro, detestavam-se a mais e mais, e padeciam muito, Miranda principalmente, que era paixão da última hora. A nal acabaram aborrecendo a moça. Esta viu-os ir pouco a pouco. A esperança ainda os fez relapsos, mas tudo morre, até a esperança, e eles saíram para nunca mais. As noites foram passando, passando... Maria Regina compreendeu que estava acabado. A noite em que se persuadiu bem disto foi uma das mais belas daquele ano, clara, fresca, luminosa. Não havia lua; mas nossa amiga aborrecia a lua — não se sabe bem por quê —, ou porque brilha de empréstimo, ou porque toda a gente a admira, e pode ser que por ambas as razões. Era uma das suas esquisitices. Agora outra. Tinha lido de manhã, em uma notícia de jornal, que há estrelas duplas, que nos parecem um só astro. Em vez de ir dormir, encostou-se à janela do quarto, olhando para o céu, a ver se descobria alguma delas; baldado esforço. Não a descobrindo no céu, procurou-a em si mesma, fechou os olhos para imaginar o fenômeno; astronomia fácil e barata, mas não sem risco. O pior que ela tem é pôr os astros ao alcance da mão; por modo que, se a pessoa abre os olhos e eles continuam a fulgurar lá em cima, grande é o desconsolo e certa a blasfêmia. Foi o que sucedeu aqui. Maria Regina viu dentro de si a estrela dupla e única. Separadas, valiam bastante; juntas, davam um astro esplêndido. E ela queria o astro esplêndido. Quando abriu os olhos e viu que o rmamento cava tão alto, concluiu que a criação era um livro falho e incorreto, e desesperou. No muro da chácara viu então uma cousa parecida com dous olhos de gato. A princípio teve medo, mas advertiu logo que não era mais que a reprodução externa dos dous astros que ela vira em si mesma e que tinham cado impressos na retina. A retina desta moça fazia re etir cá fora todas as suas imaginações. Refrescando o vento recolheu-se, fechou a janela e meteu-se na cama. Não dormiu logo, por causa de duas rodelas de opala que estavam incrustadas na parede; percebendo que era ainda uma ilusão, fechou os olhos e dormiu. Sonhou que morria, que a alma dela, levada aos ares, voava na direção de uma bela estrela dupla. O astro desdobrou-se, e ela voou para uma das duas porções; não achou ali a sensação primitiva e despenhou-se para outra; igual resultado, igual regresso, e ei-la a andar de uma para outra das duas estrelas separadas. Então uma voz surgiu do abismo, com palavras que ela não entendeu: — É a tua pena, alma curiosa de perfeição; a tua pena é oscilar por toda a eternidade entre dous astros incompletos, ao som desta velha sonata do absoluto: lá, lá, lá... Gazeta de Notícias , 20 de janeiro de 1886 .

bottom of page