Resenha: Desonra de J.M. Coetzee
- Paulo André

- 12 de jun.
- 3 min de leitura
Atualizado: 13 de jun.

J.M. Coetzee, com sua prosa afiada e implacável, nos entrega em Desonra (1999) um romance que é tanto um mergulho sombrio na alma humana quanto um doloroso retrato da África do Sul pós-apartheid. A obra, que lhe rendeu o segundo Booker Prize, é um estudo incômodo sobre poder, vulnerabilidade e a complexa teia da culpa e do perdão.
A trama centra-se em David Lurie, um professor universitário de cinquenta e poucos anos, divorciado e com uma vida acadêmica e pessoal estagnada. Ele é um homem de intelecto apurado, mas com uma crescente sensação de distanciamento do mundo contemporâneo e de seus valores. Sua existência monótona e complacente é quebrada quando ele se envolve em um caso com Melanie Isaacs, uma de suas alunas. O relacionamento, marcado pelo abuso de poder e pela indiferença fria de David às implicações de suas ações, é descoberto.
A Decadência de David Lurie: Do Intelectual ao Despossuído
A decadência de David não é súbita, mas um processo gradual e doloroso, desencadeado por suas próprias escolhas e acelerado pelas circunstâncias. Inicialmente, sua desonra manifesta-se no âmbito profissional. Diante da acusação de má conduta sexual, David recusa-se a se submeter aos rituais de contrição exigidos pela universidade. Ele se agarra a uma noção de integridade pessoal (ou talvez, de arrogância) que o impede de admitir a culpa nos termos da instituição. Essa recusa o leva à demissão, um primeiro passo para a perda de seu status social e intelectual. Ele perde não apenas o emprego, mas a plataforma de onde exercia sua influência e sua identidade como acadêmico respeitado.
Em busca de refúgio e, talvez, de uma nova forma de existência, David se muda para a fazenda isolada de sua filha, Lucy, no interior do Cabo Oriental. Aqui, sua decadência assume novas dimensões. O ambiente rural é um contraste gritante com sua vida urbana e intelectualizada. David, acostumado ao conforto e à segurança, é subitamente confrontado com a dureza da vida no campo, a vulnerabilidade e a incerteza. A casa de Lucy é modesta, a segurança é precária, e David se sente cada vez mais deslocado e inútil.
O ponto de inflexão mais brutal de sua degradação ocorre quando a fazenda é invadida por três homens negros. David é agredido, roubado e, testemunha o estupro de Lucy. Este evento não é apenas um ato de violência física; é um ato simbólico que despoja David do que resta de sua dignidade e de sua capacidade de proteger sua filha. A inação e a passividade forçadas diante da brutalidade o deixam em um estado de choque e impotência. É nesse momento que David atinge o fundo do poço, confrontado com a verdade de que não pode controlar o mundo ao seu redor, nem mesmo defender aqueles que ama.
A reação de Lucy ao trauma, sua relutância em denunciar o crime, e sua decisão de aceitar as consequências do ataque – incluindo a possibilidade de uma gravidez indesejada e a submissão a um arranjo com um vizinho para sua proteção – são o cerne da reflexão de Coetzee sobre a nova África do Sul. David, por sua vez, é forçado a reavaliar suas próprias concepções de justiça, vingança e sobrevivência em um cenário onde as antigas hierarquias de poder foram desfeitas. Sua jornada o leva a trabalhar em um crematório de animais, uma ocupação que simboliza sua própria descida a um nível de existência humilde e desprovido de ambição. Ele se envolve com os corpos dos animais mortos, encontrando uma estranha forma de consolo e propósito na tarefa de dispor deles, um eco de sua própria desolação e a busca por alguma forma de significado em um mundo que perdeu seu sentido.
Uma Reflexão Sobre a Condição Humana
O que torna Desonra tão poderoso é a maneira como Coetzee explora a inversão de papéis e a inescapável herança do passado. David, antes um homem de privilégio e controle, é forçado a confrontar sua própria impotência e a barbárie que emerge em um país ainda lutando para se redefinir. A figura de Lucy, com sua aceitação quase resignada do sofrimento, personifica uma forma complexa de reconciliação ou, talvez, de um fardo inescapável.
A escrita de Coetzee é ascética, despojada de sentimentalismos, e foca na essência da condição humana. Ele não oferece respostas fáceis, mas sim indagações profundas sobre moralidade, culpa, compaixão e a busca por dignidade em meio à degradação. O final, particularmente marcante e aberto a interpretações, reforça a ideia de que a "desonra" pode ser tanto uma punição quanto um caminho para uma espécie de redenção, ainda que amarga, encontrada na resignação e no serviço aos mais vulneráveis.
Desonra é um livro que provoca, desafia e permanece com o leitor muito tempo depois de sua última página. É uma obra essencial para entender as complexidades da África do Sul contemporânea e, mais universalmente, a capacidade humana de infligir e suportar a dor.



Coetzee é um cara que merece ser lido.