O Espelho e o Abismo: A Jornada do Herói, da Formação à Negação
- Paulo André

- 25 de ago.
- 6 min de leitura
Quem sou eu? Quem me tornarei? Estas são, talvez, as perguntas mais fundamentais que nos assombram da juventude à maturidade. A literatura, em sua infinita capacidade de ser um laboratório da alma humana, nunca se furtou a encená-las. No coração dessa investigação está uma forma narrativa que dominou a imaginação ocidental por séculos: o romance de formação, ou, em seu termo original alemão, o Bildungsroman.
O Bildungsroman é a grande promessa do Iluminismo traduzida em ficção. Ele nos conta a história de um protagonista, geralmente jovem, que parte em uma jornada de autodescoberta. Através de provações, erros, amores e desilusões, ele (e, mais tardiamente, ela) gradualmente amadurece, educa seus sentimentos e, ao final, encontra seu lugar no mundo, integrando-se de forma harmônica à estrutura social. É uma narrativa de construção, de síntese, de ordem.
Contudo, a modernidade, com suas guerras, sua psicologia do profundo e sua crescente desconfiança nas grandes narrativas, forjou um irmão sombrio para este gênero: o romance de antiformação, ou Anti-Bildungsroman. Aqui, a jornada não leva à integração, mas à alienação. O protagonista não se molda ao mundo; ele o rejeita, ou é esmagado por ele. A trajetória não é uma ascensão para a maturidade, mas uma queda no abismo da paralisia, do niilismo ou da desintegração. É uma narrativa de fragmentação, de recusa, de caos.
Hoje, meus caros, quero convidá-los a descer a este ringue. De um lado, dois monumentos da formação artística. Do outro, dois manifestos da impossibilidade de se formar. Vamos observar como a literatura reflete o espelho da nossa própria busca por um lugar no mundo – e também o abismo que se abre quando essa busca falha.
A Promessa da Forma: O Artista e a Sociedade

No Künstlerroman, o romance de formação do artista, a jornada é duplamente difícil. O herói não busca apenas um lugar na sociedade, mas uma voz própria, uma consciência estética que, muitas vezes, o coloca em conflito direto com essa mesma sociedade.
Em "Retrato do Artista Quando Jovem", James Joyce nos entrega o arquétipo dessa luta. Acompanhamos Stephen Dedalus desde suas primeiras impressões sensoriais de infância até sua decisão final de abandonar a Irlanda. Para ele, a formação como artista exige a recusa das três grandes amarras que tentam moldá-lo: a família, a pátria e a igreja. Sua jornada é uma sucessão de rompimentos dolorosos em nome de uma liberdade superior. Ele precisa se exilar para cumprir seu destino, para, em suas famosas palavras, sair ao encontro "da realidade da experiência e forjar na bigorna da minha alma a consciência incriada da minha raça". A formação de Stephen não é uma integração pacífica; é uma autoexpropriação necessária para a criação. Ele se forma apesar do mundo, não através dele.
Thomas Mann, em sua novela magistral "Tonio Kröger", explora uma tensão mais sutil, mas não menos profunda. Tonio, o artista, ama a vida "normal", burguesa, encarnada por seus colegas loiros e de olhos azuis, Hans Hansen e Ingeborg Holm. Ele os ama justamente porque não pode ser como eles. A sua sensibilidade artística, sua capacidade de ver e formular, o isola, o marca como diferente, quase como um doente. A grande crise de Tonio é esta: como reconciliar seu amor pela vida com a distância fria que a arte exige para observá-la? A resposta de Mann é uma síntese melancólica. Tonio aceita seu destino. Ele é um "burguês extraviado", um artista cujo trabalho é alimentado por seu amor não correspondido pela vida comum. Sua formação se completa quando ele entende e aceita essa dualidade como a própria fonte de sua arte.
A Recusa do Molde: O Indivíduo Contra o Mundo

Se Joyce e Mann nos mostram a dificuldade de forjar uma identidade, Salinger e Dostoiévski nos jogam em cenários onde a própria ideia de identidade coerente é posta em xeque.
Em "O Apanhador no Campo de Centeio", de J.D. Salinger, temos a voz que definiu a rebelião de uma geração. Holden Caulfield é o herói de uma antijornada. Ele é expulso da escola – o lugar institucional da formação – e sua errância por uma Nova York invernal e hostil é uma fuga desesperada do mundo adulto, que ele resume em uma única e fulminante palavra: phony (falso, hipócrita). Holden não aprende, não amadurece, não se integra. Pelo contrário, cada encontro com o mundo adulto apenas aprofunda seu desencanto e sua alienação. Seu desejo de ser "o apanhador no campo de centeio", de proteger a inocência das crianças, é um desejo de parar o tempo, de impedir a própria formação, que ele vê como sinônimo de corrupção. O romance não termina com uma resolução, mas com um colapso.
Mas é com o Homem do Subsolo de Dostoiévski, em "Notas do Subsolo", que chegamos ao ponto mais radical da antiformação. Aqui não se trata de um jovem em crise, mas de um homem já malformado, entrincheirado em seu ressentimento e paralisado por sua consciência aguda. Ele não se rebela contra a hipocrisia social, como Holden; ele se rebela contra as próprias leis da natureza e da razão. Ele despreza a lógica do "dois mais dois são quatro" porque ela elimina o livre-arbítrio, a capacidade de agir por puro capricho, mesmo que seja contra seus próprios interesses. O subsolo é o espaço mental do homem moderno que sabe demais, pensa demais e, por isso, não consegue agir. Ele nos apresenta um retrato terrível do que acontece quando a formação não apenas falha, mas se torna um processo de autoanálise infinita e autodestrutiva.
Pois o que pode um homem de sensibilidade aguda senão se enclausurar, se esconder? (...) A inteligência, sem dúvida, é uma coisa excelente, mas a inteligência é apenas a inteligência e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto a vontade é a manifestação de toda a vida, isto é, de toda a vida humana, incluindo a razão e todos os seus impulsos.
O Homem do Subsolo recusa a formação porque ela pressupõe um objetivo, uma finalidade, e ele se deleita na ausência de propósito, na liberdade terrível do "subsolo".
O Diálogo das Eras: Da Síntese à Fragmentação
Colocados lado a lado, estes quatro heróis nos contam a história da consciência ocidental. De um lado, a crença de que é possível, ainda que com dor, forjar um "eu" coeso e encontrar um sentido para a própria existência (Stephen, Tonio). Do outro, a suspeita crescente de que o "eu" é uma ilusão e que o mundo não oferece nenhum lugar seguro para se integrar (Holden, Homem do Subsolo).
Para vocês, escritores, esta não é uma discussão meramente teórica. Toda vez que criam um personagem, vocês se deparam com essa mesma encruzilhada. A jornada dele será de construção ou de desmoronamento? Ele encontrará seu lugar ou personificará a impossibilidade de pertencer? A estrutura da sua narrativa irá refletir um mundo onde a ordem é possível ou um onde o caos reina?
Minha colega, Ana Amélia, certamente apontaria como a sintaxe labiríntica de Joyce constrói a consciência de Stephen, ou como os monólogos febris e repetitivos de Dostoiévski nos aprisionam no subsolo da mente de seu narrador. A forma, como ela sempre nos lembra, não é um enfeite, mas o próprio campo de batalha onde essas visões de mundo se enfrentam.
A jornada de formação, com sua promessa de sentido, e a de antiformação, com seu testemunho do absurdo, são os dois grandes polos que energizam a ficção. Entre eles, se desenrola o drama infinito do que significa ser humano.
☕Um café e uma primeira conversa
A jornada de um personagem, seja ela de formação ou de fragmentação, ecoa de maneira profunda a jornada de quem o cria. Escrever é, em si, um ato de busca, um processo de dar forma ao caos das ideias, de encontrar uma voz em meio a tantas outras, de construir um lugar no mundo para sua história.
Se você se sente no meio dessa travessia, seja no espelho da construção ou no abismo da dúvida, talvez seja a hora de um diálogo. A proposta da Letra & Ato é exatamente esta: uma conversa profunda sobre seu texto. Não para impor um caminho, mas para caminhar ao seu lado, ajudando a iluminar as encruzilhadas e a fortalecer a estrutura da sua narrativa.
Que tal nos enviar um trecho do seu original? Podemos oferecer uma amostra da nossa revisão comentada, sem compromisso. Será o início de um diálogo que pode ajudar a sua obra a completar a jornada que ela merece.
Letra & Ato
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Um abraço! Até a próxima Segunda. Paulo André
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