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- A Estrutura da Bolha de Sabão de Lygia Fagundes Telles
ERA O QUE ELE ESTUDAVA. “A estrutura, quer dizer, a estrutura” — ele repetia e abria a mão branquíssima ao esboçar o gesto redondo. Eu ficava olhando seu gesto impreciso porque uma bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho. Película e oco. “A estrutura da bolha de sabão, compreende?” Não o compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal da minha meninice com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava os mais tenros, que sopravam as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de cada vez. Amor calculado, porque na afobação o sopro desencadeava o processo e um delírio de cachos escorriam pelo canudo e vinham rebentar na minha boca, a espuma descendo pelo queixo. Molhando o peito. Então eu jogava longe canudo e caneca. Para recomeçar no dia seguinte, sim, as bolhas de sabão. Mas e a estrutura? “A estrutura” — ele insistia. E seu gesto delgado de envolvimento e fuga parecia tocar mas guardava distância, cuidado, cuidadinho, ô! a paciência. A paixão. No escuro eu sentia essa paixão contornando sutilíssima meu corpo. Estou me espiritualizando, eu disse e ele riu fazendo fremir os dedos-asas, a mão distendida imitando libélula na superfície da água mas sem se comprometer com o fundo, divagações à flor da pele, ô! amor de ritual sem sangue. Sem grito. Amor de transparências e membranas, condenado à ruptura. Ainda fechei a janela para retê-la, mas com sua superfície que refletia tudo ela avançou cega contra o vidro. Milhares de olhos e não enxergava. Deixou um círculo de espuma. Foi simplesmente isso, pensei quando ele tomou a mulher pelo braço e perguntou: “Vocês já se conheciam?” Sabia muito bem que nunca tínhamos nos visto mas gostava dessas frases acolchoando situações, pessoas. Estávamos num bar e seus olhos de egípcia se retraíam apertados. A fumaça, pensei. Aumentavam e diminuíam até que se reduziram a dois riscos de lápis-lazúli e assim ficaram. A boca polpuda também se apertou, mesquinha. Tem boca à-toa, pensei. Artificiosamente sensual, à-toa. Mas como é que um homem como ele, um físico que estudava a estrutura das bolhas, podia amar uma mulher assim? Mistérios, eu disse e ele sorriu, nos divertíamos em dizer fragmentos de ideias, peças soltas de um jogo que jogávamos meio ao acaso, sem encaixe. Convidaram-me e sentei, os joelhos de ambos encostados nos meus, a mesa pequena enfeixando copos e hálitos. Me refugiei nos cubos de gelo amontoados no fundo do copo, ele podia estudar a estrutura do gelo, não era mais fácil? Mas ela queria fazer perguntas. Uma antiga amizade? Uma antiga amizade. Ah. Fomos colegas? Não, nos conhecemos numa praia, onde? Por aí, numa praia. Ah. Aos poucos o ciúme foi tomando forma e transbordando espesso como um licor azul-verde, do tom da pintura dos seus olhos. Escorreu pelas nossas roupas, empapou a toalha da mesa, pingou gota a gota. Usava um perfume adocicado. Veio a dor de cabeça: “Estou com dor de cabeça”, repetiu não sei quantas vezes. Uma dor fulgurante que começava na nuca e se irradiava até a testa, na altura das sobrancelhas. Empurrou o copo de uísque. “Fulgurante.” Empurrou para trás a cadeira e antes que empurrasse a mesa ele pediu a conta. Noutra ocasião a gente poderia se ver, de acordo? Sim, noutra ocasião, é lógico. Na rua, ele pensou em me beijar de leve, como sempre, mas ficou desamparado e eu o tranquilizei, está bem, querido, está tudo bem, já entendi. Tomo um táxi, vá depressa, vá. Quando me voltei, dobravam a esquina. Que palavras estariam dizendo enquanto dobravam a esquina? Fingi me interessar pela valise de plástico de xadrez vermelho, estava diante de uma vitrina de valises. Me vi pálida no vidro. Mas como era possível. Choro em casa, resolvi. Em casa telefonei a um amigo, fomos jantar e ele concluiu que o meu cientista estava felicíssimo. Felicíssimo, repeti quando no dia seguinte cedo ele telefonou para explicar. Cortei a explicação com o felicíssimo e lá do outro lado da linha senti-o rir como uma bolha de sabão seria capaz de rir. A única coisa inquietante era aquele ciúme. Mudei logo de assunto com o licoroso pressentimento de que ela ouvia na extensão, oh, o teatro. A poesia. Então ela desligou. O segundo encontro foi numa exposição de pintura. No começo aquela cordialidade. A boca pródiga. Ele me puxou para ver um quadro de que tinha gostado muito. Não ficamos distantes dela nem cinco minutos. Quando voltamos, os olhos já estavam reduzidos aos dois riscos. Passou a mão na nuca. Furtivamente acariciou a testa. Despedi-me antes da dor fulgurante. Vai virar sinusite, pensei. A sinusite do ciúme, bom nome para um quadro ou ensaio. “Ele está doente, sabia? Aquele cara que estuda bolhas, não é seu amigo?” Em redor, a massa fervilhante de gente, música. Calor. Quem é que está doente? eu perguntei. Sabia perfeitamente que se tratava dele mas precisei perguntar de novo, é preciso perguntar uma, duas vezes para ouvir a mesma resposta, que aquele cara, aquele que estuda essa frescura da bolha, não era meu amigo? Pois estava muito doente, quem contou foi a própria mulher, bonita, sem dúvida, mas um tanto grosseira, fora casada com o primo de um amigo, um industrial meio fascista que veio para cá com passaporte falso, até a Interpol já estava avisada, durante a guerra se associou com um tipo que se dizia conde italiano mas não passava de um contrabandista. Estendi a mão e agarrei seu braço porque a ramificação da conversa se alastrava pelas veredas, mal podia vislumbrar o desdobramento da raiz varando por entre pernas, sapatos, croquetes pisados, palitos, fugia pela escada na descida vertiginosa até a porta da rua, espera! eu disse. Espera. Mas que é que ele tem? Esse meu amigo. A bandeja de uísque oscilou perigosamente acima do nível das nossas cabeças. Os copos tilintaram na inclinação para a direita, para a esquerda, deslizando num só bloco na dança de um convés na tempestade. O que tinha? O homem bebeu metade do copo antes de responder: não sabia os detalhes e nem se interessara em saber, afinal, a única coisa gozada era um cara estudar a estrutura da bolha, mas que ideia! Tirei-lhe o copo e bebi devagar o resto do uísque com o cubo de gelo colado ao meu lábio, queimando. Não ele, meu Deus. Não ele, eu repeti. Embora grave, custosamente minha voz varou todas as camadas do meu peito até tocar no fundo onde as pontas todas acabam por dar, que nome tinha? Esse fundo, perguntei e fiquei sorrindo para o homem e seu espanto. Expliquei-lhe que era o jogo que eu costumava jogar com ele, com esse meu amigo, o físico. O informante riu. “Juro que nunca pensei que fosse encontrar no mundo um cara que estudasse um troço desses”, resmungou ele voltando-se rápido para apanhar mais dois copos na bandeja, ô! tão longe ia a bandeja e tudo o mais, fazia quanto tempo? “Me diga uma coisa, vocês não viveram juntos?” — lembrou-se o homem de perguntar. Peguei no ar o copo borrifando na tormenta. Estava nua na praia. Mais ou menos, respondi. Mais ou menos eu disse ao motorista que perguntou se eu sabia onde ficava essa rua. Tinha pensado em pedir notícias por telefone mas a extensão me travou. E agora ela abria a porta, bemhumorada. Contente de me ver? A mim?! Elogiou minha bolsa. Meu penteado despenteado. Nenhum sinal da sinusite. Mas daqui a pouco vai começar. Fulgurante. “Foi mesmo um grande susto” — ela disse. “Mas passou, ele está ótimo ou quase — acrescentou levantando a voz. Do quarto ele poderia nos ouvir se quisesse. Não perguntei nada. A casa. Aparentemente, não mudara, mas reparando melhor, tinha menos livros. Mais cheiros. Flores de perfume ativo no vaso, óleos perfumados nos móveis. E seu próprio perfume. Objetos frívolos — os múltiplos — substituindo em profusão os únicos, aqueles que ficavam obscuros nas antigas prateleiras da estante. Examinei-a enquanto me mostrava um tapete que tecera nos dias em que ele ficou no hospital. E a fulgurante? Os olhos continuavam bem abertos, a boca descontraída. Ainda não. “Você poderia ter se levantado, hein, meu amor? Mas anda muito mimado”, disse ela quando entramos no quarto. E começou a contar muito animada a história de um ladrão que entrara pelo porão da casa ao lado, “a casa da mãezinha”, acrescentou afagando os pés dele debaixo da manta de lã. Acordaram no meio da noite com o ladrão aos berros pedindo socorro com a mão na ratoeira, tinha ratos no porão e na véspera a mãezinha armara uma enorme ratoeira para pegar o rei de todos, lembra, amor? O amor estava de chambre verde, recostado na cama cheia de almofadas. As mãos branquíssimas descansando entrelaçadas na altura do peito. Ao lado, um livro aberto e cujo título deixei para ler depois e não fiquei sabendo. Ele mostrou interesse pelo caso do ladrão mas estava distante do ladrão, de mim e dela. De quando em quando me olhava interrogativo, sugerindo lembranças mas eu sabia que era por delicadeza, sempre foi delicadíssimo. Atento e desligado. Onde? Onde estaria com seu chambre largo demais? Era devido àquelas dobras todas que fiquei com a impressão de que emagrecera? Duas vezes empalideceu, ficou quase lívido. Comecei a sentir falta de alguma coisa, era do cigarro? Acendi um e ainda a sensação aflitiva de que alguma coisa faltava, mas o que estava errado ali? Na hora da pílula lilás ela foi buscar o copo d’água e então ele me olhou lá do seu mundo de estruturas. Bolhas. Por um momento relaxei completamente: não sei onde está, mas sei que não está, eu disse e ele perguntou, “Jogar?” Rimos um para o outro. “Engole, amor, engole” — pediu ela segurando-lhe a cabeça. E voltou-se para mim, “preciso ir aqui na casa da mamãezinha e minha empregada está fora, você não se importa em ficar mais um pouco? Não demoro muito, a casa é ao lado”, acrescentou. Ofereceu-me uísque, não queria mesmo? Se quisesse, estava tudo na copa, uísque, gelo, ficasse à vontade. O telefone tocando será que eu podia?... Saiu e fechou a porta. Fechou-nos. Então descobri o que estava faltando, ô! Deus. Agora eu sabia que ele ia morrer. 👉👉👉 Compre os Os Contos Completos na Amazon! Estava superbarato quando publiquei esse aqui.
- Escrever Não Paga Boletos (Até que Paga): O Guia Financeiro do Escritor
A Síndrome do Artista Faminto: Por que a Pobreza Não é um Pré-Requisito para a Arte . Olá, caros colegas de ofício e de boletos. Ana Amélia na área para a conversa mais desconfortável e mais necessária de todas: dinheiro. Isso mesmo. Dinheiro. A palavra que parece suja na boca de um artista. Fomos doutrinados a acreditar em uma das maiores mentiras já contadas: a de que a verdadeira arte nasce da privação. O "artista faminto", genial em seu sótão gelado, é um personagem trágico e... profundamente ineficiente. Vamos ser brutalmente honestos: a ansiedade de não saber como vai pagar o aluguel no fim do mês não é combustível criativo. É um veneno. Ela não inspira poemas, ela causa bloqueio. A imagem do gênio que sofre é uma armadilha romântica que nos convence a aceitar a precariedade como um selo de autenticidade. Pois eu digo: que se dane a autenticidade da miséria. Querer estabilidade financeira não faz de você um vendido. Faz de você um adulto. E ser um escritor profissional é, antes de tudo, um ato de maturidade. A Prova dos Nove: Os Mestres Também Tinham "Day Jobs" Acha que os grandes nomes da literatura flutuavam por aí em uma nuvem de inspiração, alheios às preocupações mundanas? Pense de novo. Muitos deles eram mestres na arte de equilibrar pratos: o da paixão e o do pão. Fernando Pessoa, o Auxiliar de Escritório Anônimo Um dos maiores poetas da língua portuguesa, o homem que continha multidões dentro de si, era, durante o dia, um pacato e anônimo correspondente comercial e tradutor em escritórios de Lisboa. Fernando Pessoa nunca dependeu financeiramente da sua escrita literária. Seu sustento vinha de um trabalho considerado "menor", "não criativo". Ele era um homem de escritório. Essa vida dupla não era um sinal de fracasso, mas a condição que lhe permitia total e absoluta liberdade criativa. Sem a pressão de ter que vender para comer, seus heterônimos podiam nascer, viver e escrever sem amarras comerciais, explorando as profundezas da alma humana em seu próprio ritmo. O escritório pagava as contas para que a poesia pudesse ser livre. Entenderam o pulo do gato? O "day job" não era a antítese da sua arte; era o seu patrono silencioso. Era a estrutura que garantia a liberdade para sua obra ser exatamente como precisava ser: radical, complexa e completamente avessa a modas. Franz Kafka e a Burocracia que Alimenta Pesadelos E o que dizer de Kafka? O mestre do absurdo e da angústia burocrática trabalhava em uma companhia de seguros. Ele odiava, claro. Mas esse mergulho diário no labirinto de regras, formulários e desumanização do sistema foi, sem dúvida, o adubo para suas histórias mais aterrorizantes. A rotina no Instituto de Seguros de Acidentes de Trabalho era esmagadora, mas essencial. Kafka escrevia à noite, roubando horas do sono, atormentado pela sensação de que sua vida estava dividida. No entanto, a experiência com a burocracia impessoal, as hierarquias opressivas e a lógica labiríntica do seu emprego ecoam em cada página de O Processo ou O Castelo . Ele não escrevia apesar do seu trabalho; ele transmutava o veneno do seu cotidiano em matéria-prima para sua arte imortal. Kafka nos mostra que até o pior dos empregos pode ser canibalizado pela arte. Ele transformou sua frustração em um universo literário. O emprego não só pagava suas contas, como também, involuntariamente, lhe entregava seus temas de bandeja. O Plano de Batalha: Da Frustração à Monetização Ok, os mestres eram gente como a gente. E agora? Como a gente faz? O caminho para uma vida de escrita sustentável é um jogo de fases. Fase 1: Abrace o "Day Job" (Sem Morrer por Dentro) Pare de ver seu emprego como seu inimigo. Ele é seu investidor-anjo. Ele compra seu tempo, sua paz de espírito e o luxo de poder escrever o que você quer , não o que você precisa vender desesperadamente. Reformule sua perspectiva: você não está "preso" em um emprego, você está em uma "residência artística autofinanciada". Fase 2: Os Primeiros Vinténs (Monetize suas Habilidades) Enquanto seu romance genial não vira um best-seller, use o que você já sabe fazer para ganhar uma grana extra. Escritores são bons com palavras. O mercado precisa disso. Considere: Redação Freelance: Escrever posts para blogs, artigos, conteúdo para sites. Copywriting: Escrever textos persuasivos para anúncios, e-mails, etc. É um ofício em si, mas muito lucrativo. Revisão e Leitura Crítica (Beta Reading): Ajude outros escritores e seja pago por isso. Tradução: Se você domina outro idioma, é um mercado gigantesco. Esses trabalhos não são sua "obra-prima", são o seu ofício. Eles treinam seu músculo da escrita e colocam dinheiro no bolso. Fase 3: O Jogo Longo (Construa Sua Plataforma) Comece a pensar em si mesmo como uma marca. Crie um blog, uma newsletter, um perfil profissional em uma rede social. Compartilhe seu processo, suas leituras, seus contos. Isso não vai pagar o aluguel amanhã, mas vai construir uma audiência. E quando seu livro estiver pronto, você não estará gritando para o vácuo. Você terá uma comunidade esperando para te ouvir. Ninguém está dizendo que é fácil. Mas é possível. É hora de abandonar a mentalidade de que merecemos pouco. Seu talento vale, seu tempo vale. Exigir que sua arte te sustente não é ganância. É o objetivo final. Agora vá, pague seus boletos com a cabeça erguida. O mundo precisa da sua história, e você precisa de um prato de comida e uma boa conexão de internet para contá-la.
- A Marca na Parede: Conto de Virgínia Woolf.
Esqueça tudo o que você acha que sabe sobre o que faz uma história. Se você está esperando por heróis, vilões, um conflito claro e uma resolução arrumadinha, Virginia Woolf está prestes a dinamitar suas expectativas. Em "A Marca na Parede", ela não nos oferece uma trama, mas sim um convite irrecusável para um mergulho de cabeça na matéria mais volátil e fascinante que existe: a consciência humana em seu estado bruto. A premissa é de uma simplicidade que beira o absurdo. Uma pessoa, sentada confortavelmente, nota uma marca na parede. É um prego? A marca de uma rosa? Um caracol? A resposta é o que menos importa. A marca é apenas o pretexto, o pino de uma granada que, uma vez puxado, deflagra uma explosão de pensamentos, memórias, digressões filosóficas e sensações poéticas. O que você está prestes a ler não é um conto, é uma experiência. Uma viagem sem mapa pelo fluxo caótico e brilhante de uma mente em funcionamento, onde reflexões sobre Shakespeare se misturam a memórias de infância e a críticas veladas à ordem social. Woolf nos mostra que a maior de todas as aventuras não acontece em campos de batalha ou em terras distantes, mas no espaço infinito que existe entre um olhar e uma parede. Prepare-se. A literatura nunca mais será a mesma depois disso. A Marca na Parede Foi talvez em meados de janeiro deste ano que olhei pela primeira vez para cima e vi a marca na parede. Para fixar uma data é preciso lembrar o que se viu. Por isso eu penso agora no fogo; no inalterável véu de luz amarela sobre a página do meu livro; nos três crisântemos na jarra de vidro redonda na lareira. Sim, deve ter sido no inverno, e tínhamos acabado de terminar nosso chá, pois lembro que eu estava fumando quando olhei para cima e vi a marca na parede pela primeira vez. Olhei para cima, através da fumaça do cigarro, e meu olhar foi alojar-se por um momento nas brasas, e aquela velha fantasia da bandeira carmesim tremulando na torre de um castelo me veio à mente, e pensei no cortejo de cavaleiros vermelhos subindo pelo penhasco negro. Mas, para meu alívio, a fantasia foi interrompida pela visão da marca, porque é uma fantasia antiga, uma fantasia automática, constituída talvez na infância. A marca, negra na parede branca, era pequena e arredondada, a uns quinze centímetros acima do parapeito da lareira. Quão de pronto nossos pensamentos se atiram a um novo objeto, erguendo-o por um pouco, assim como formigas que carregam febrilmente uma lasca de palha e depois a abandonam… Se a marca fosse de prego, não devia ter sido para quadro, só podia ser para miniatura — a miniatura de uma dama de cachos empoados de branco, faces empoadas de creme e lábios como cravos vermelhos. Uma fraude decerto, pois as pessoas que moraram nesta casa antes de nós teriam escolhido quadros assim — para um cômodo antigo, um quadro antigo. Eis o tipo de pessoas que eram — pessoas muito interessantes, e é tão frequente eu pensar nelas, nesses lugares tão estranhos, porque nunca voltaremos a vê-las, nunca saberemos o que aconteceu a seguir. Pretendiam sair desta casa porque queriam mudar o estilo dos móveis, assim disse ele, e estava em processo de dizer que em sua opinião a arte deveria ter ideias por trás quando fomos separados à força, como somos separados da velha senhora que está para servir o chá e do jovem que está para atingir a bola de tênis no quintal da casa suburbana quando passamos de trem. Mas, quanto à marca, não estou certa; não creio, afinal, que tenha sido feita por um prego; é muito grande e redonda para ser de prego. Eu poderia levantar-me, mas se o fizesse, para a olhar, é quase certo que não saberia dizer exatamente o que é; porque, uma vez feita uma coisa, ninguém nunca sabe como aconteceu. Oh, meu Deus, o mistério da vida! A inexatidão do pensamento! A ignorância da humanidade! Para mostrar como é pouquíssimo o controle que temos sobre nossas posses — sendo questão acidental que este modo de vida seja afinal nossa civilização —, deixem-me enumerar apenas algumas das coisas perdidas em nosso tempo de vida, a começar por — que gato iria comer, que rato iria roer? — três caixas azuis de ferramentas para encadernação de livros, que sempre pareceu a mais misteriosa das perdas. Depois houve as gaiolas de pássaros, os aros de ferro, os patins de aço, a caixa de carvão Queen Anne, o quadro de bugigangas, o realejo — tudo se foi, e também joias. Opalas e esmeraldas jazem em torno das raízes de nabos. Como é preciso aparar e raspar para ter certeza! Espanta é que eu tenha roupas no corpo, que me sente rodeada, neste momento, de móveis sólidos. Porque, se quisermos comparar a vida a alguma coisa, temos de equipará-la a ser levada pelo metrô a oitenta quilômetros por hora — desembarcando no outro extremo sem um único grampo no cabelo! Lançada totalmente nua aos pés de Deus! De pernas para o ar nas campinas de asfódelos como embrulhos de papel pardo jogados, no correio, pela calha abaixo! Com o cabelo voando para trás como o rabo de um cavalo de corrida. Sim, isso parece expressar a rapidez da vida, o gasto perpétuo e a perpétua recuperação; e tão por acaso, tão a esmo… Mas após a vida. A queda lenta dos pedúnculos verdes e grossos para que o cálice da flor, à medida que vira, banhe-nos de luz vermelha e púrpura. Por que, afinal, não se há de nascer lá como se nasce aqui, sem defesa e sem fala, incapaz de focar os olhos, agarrando-se às raízes da grama, aos pés dos Gigantes? Quanto a dizer o que são árvores, o que são homens e mulheres, ou se existem tais coisas, isso não estaremos em condições de fazer por cinquenta anos ou mais. Não haverá nada a não ser espaços de luz e escuridão, cruzados por pedúnculos grossos, e talvez bem altos, traços em forma de roseta de uma cor indistinta — rosas pálidos e azuis — que se tornarão, com o passar do tempo, mais definidos, mais — não sei o quê… E no entanto a marca na parede nem chega a ser um buraco. Pode até ter sido causada por alguma coisa arredondada e preta, como uma folhinha de roseira deixada pelo verão, e não sendo eu uma dona de casa muito atenta — vejam só, por exemplo, quanta poeira em cima da lareira, a poeira que, pelo que dizem, cobriu Troia por três vezes, apenas fragmentos de vasos negando-se obstinadamente à aniquilação, como se pode crer. A árvore perto da janela bate de leve na vidraça… Quero pensar com calma, em paz, espaçosamente, nunca ser interrompida, nunca ter de me levantar da cadeira, deslizar à vontade de uma coisa para outra, sem nenhuma sensação de hostilidade, nem obstáculo. Quero mergulhar cada vez mais fundo, longe da superfície, com seus fatos isolados, indisputáveis. Firmar-me bem, deixar-me agarrar a primeira ideia que passa… Shakespeare… Bem, tanto faz ele ou outro. Um homem que solidamente sentou-se numa poltrona e olhou para o fogo e assim… Uma chuva de ideias caiu perpetuamente de algum Céu muito alto para atingir sua mente. Ele, abaixando a cabeça, apoiou a testa na mão, e os outros, olhando pela porta aberta — pois supõe-se que esta cena aconteça numa noite de verão… Mas como é enfadonha esta ficção histórica! Não me interessa em nada. Bem que eu gostaria de dar com uma linha de pensamento agradável, uma linha que indiretamente refletisse crédito em mim, pois tais são os pensamentos mais agradáveis e muito frequentes até mesmo nas mentes de modestas pessoas cor de rato, que sinceramente acreditam que não gostam de receber elogios. Não são pensamentos diretamente autoelogiosos; e essa é que é a sua beleza; são pensamentos como este: “E então entrei na sala. Eles estavam falando de botânica. Falei da flor que eu tinha visto crescendo num monte de lixo no quintal de uma casa velha em Kingsway. A semente, disse, deve ter sido plantada no reinado de Carlos i. Que flores ocorriam no reinado de Carlos I?”, perguntei — (mas não me lembro da resposta). Flores altas com pendões roxos talvez. E por aí vai. O tempo todo estou vestindo a figura de mim mesma em minha própria mente, em namoro furtivo, não a adorando abertamente, pois, se o fizesse, eu deveria considerar-me em erro e esticar a mão de imediato para em autoproteção apanhar um livro. É curioso como instintivamente protegemos nossa própria imagem de idolatria ou de qualquer manipulação que a possa tornar ridícula, ou diferente demais do original para que ainda acreditem nela. Ou isso não é, afinal de contas, tão curioso assim? É uma questão de grande importância. Suponha-se que o espelho se despedace, que a imagem desapareça e que a figura romântica com o fundo verde da floresta a envolvê-la não esteja mais lá, mas apenas aquilo, a casca de uma pessoa que é vista por outras — que mundo raso, árido, proeminente e sem ar ela se torna! Não um mundo no qual viver. Quando nos encontramos face a face, nos ônibus e trens subterrâneos, é no espelho que nós estamos olhando; o que explica a vaguidão, o brilho de vidro, em nossos olhos. E os romancistas do futuro dar-se-ão cada vez mais conta da importância dessas reflexões, pois claro está que não há só um, mas sim um número quase infinito de reflexões; são essas profundidades que eles irão explorar, esses os fantasmas que perseguirão, deixando a descrição da realidade cada vez mais fora de suas histórias, já contando com um conhecimento dela, como fizeram os gregos e talvez Shakespeare — mas essas generalizações são muito inúteis. Basta o timbre militar da palavra, que lembra editoriais, ministros de gabinete — toda uma categoria de coisas que em criança tomávamos pelo que podia haver de mais sério, de mais grave, de mais importante, e das quais não se podia escapar, a não ser sob risco de inominável danação. As generalizações trazem de volta, de alguma forma, o domingo em Londres, os passeios nas tardes de domingo, os almoços de domingo, e também modos de falar de mortos, roupas, hábitos — como o hábito de se sentarem todos juntos numa sala até certa hora, embora ninguém gostasse disso. Havia uma regra para tudo. A regra para toalhas de mesa, nessa época específica, é que deveriam ser feitas em tapeçaria, com pequenos compartimentos amarelos voltados para o lado de cima, como se pode ver em fotografias dos tapetes nos corredores dos palácios reais. As toalhas de outro tipo não eram verdadeiras. Quão chocante, no entanto quão maravilhoso, descobrir que essas coisas verdadeiras, os almoços de domingo, os passeios de domingo, as casas de campo e as toalhas de mesa, não eram afinal tão verdadeiras assim, sendo de fato meio fantasmais, e que a danação que se abatia sobre quem não acreditava nelas era apenas uma impressão de liberdade ilegítima. O que agora toma o lugar dessas coisas, pergunto-me, dessas coisas importantes e sérias? Talvez os homens, caso você seja mulher; o ponto de vista masculino que governa nossas vidas, que fixa o padrão, que estabelece a Ordem de Precedência de Whitaker, a qual desde a guerra se tornou meio fantasma, suponho eu, para muitos homens e mulheres, e que em breve, é lícito esperar, será motivo de riso na lata de lixo para onde vão os fantasmas, os bufês de mogno e as gravuras de Landseer, deuses e demônios, o Inferno e assim por diante, deixando-nos a todos uma impressão intoxicante de liberdade ilegítima — se existe liberdade… Sob certas luzes essa marca na parede parece na verdade se projetar da parede. Não é perfeitamente circular. Não posso ter certeza, mas parece lançar uma sombra perceptível, sugerindo que, se eu corresse o dedo para baixo, naquela faixa da parede, a um certo ponto ele iria subir e descer por um montículo, liso como os de South Downs, que ou bem são túmulos, segundo dizem, ou bem, acampamentos. Dos dois, eu preferiria que fossem túmulos, desejando a melancolia, como a maioria dos ingleses, e achando natural, ao fim de uma caminhada, pensar nos ossos esticados que há embaixo da terra… Deve haver algum livro sobre isso. Algum antiquário deve ter escavado essas ossadas, dando-lhes depois um nome… Que espécie de homem, pergunto-me, é um antiquário? A maioria é de coronéis reformados, creio eu, guiando grupos de trabalhadores idosos até o cume, examinando torrões e pedras e correspondendose com o clero das redondezas, o qual lhes dá, já estando aberto à hora do desjejum, um sentimento de importância, e a comparação de pontas de flechas necessita de longas viagens às cidades da região, necessidade agradável tanto para eles quanto para suas velhas esposas, que querem fazer uma geleia de ameixa, ou uma faxina no escritório, e têm todas as razões para manter essa grande questão de acampamento ou túmulo em suspensão perpétua, enquanto o próprio coronel sente-se satisfatoriamente filosófico ao acumular evidências sobre os dois lados da questão. É verdade que ele finalmente se inclina a crer no acampamento; e, quando se opõem à sua hipótese, redige um panfleto que está a ponto de ler na reunião trimestral da sociedade local quando um infarto o derruba, e seus últimos pensamentos conscientes não se reportam a mulher nem aos filhos, mas ao acampamento e àquela ponta de flecha, que agora está na vitrine do museu da cidade, junto com o pé de uma assassina chinesa, um punhado de pregos elizabetanos, muitos cachimbos de barro Tudor, um fragmento de cerâmica romana e o copo em que Nelson bebeu vinho — provando realmente não sei o quê. Não, não, nada é provado, nada é sabido. E se eu me levantasse, neste exato momento, e me certificasse de que a marca na parede é na verdade — como devo dizer? — a cabeça de um velho prego gigante, cravado ali há uns duzentos anos e que agora, devido ao paciente atrito causado por muitas gerações de faxineiras, apontou a cabeça por cima das camadas de tinta para dar sua primeira olhada na vida moderna, captando-a numa sala onde as paredes são brancas e a lareira está acesa, o que eu ganharia? Conhecimento? Tema para especulação posterior? Quer em pé, quer sentada sem me mexer, eu sou capaz de pensar. E o que é conhecimento? O que são nossos homens de saber senão descendentes de bruxas e eremitas que se acocoravam em grutas e nas matas preparando suas beberagens de ervas, interrogando musaranhos e anotando a linguagem das estrelas? E quanto menos os respeitamos, à medida que nossas superstições se reduzem e aumenta nosso respeito pela beleza e a saúde mental… Sim, poder-seia imaginar um mundo muito agradável. Um tranquilo mundo espaçoso, com flores bem azuis e vermelhas pelos descampados. Um mundo sem professores, sem especialistas, sem zeladores com perfis de polícia, um mundo que se pudesse cortar com o pensamento como um peixe corta a água com suas nadadeiras, roçando em talos de nenúfares que pendem suspensos sobre ninhos de ovos brancos do mar… Como é tranquilo aqui embaixo, enraizado no centro do mundo e olhando para cima pelo acinzentado das águas, com seus repentinos fachos de luz, com seus reflexos — ah, se não fosse o Almanaque de Whitaker — se não fosse a Ordem de Precedência! Tenho de me levantar para ir ver em pessoa o que é realmente esta marca na parede — um prego, uma folha de roseira, uma racha na madeira? Aqui está mais uma vez a Natureza em seu velho jogo de autopreservação. Esta linha de pensamento, percebe ela, ameaça tornar-se pura perda de energia, ameaça até mesmo colidir com a realidade, pois quem jamais será capaz de pôr um dedo em riste contra a Ordem de Precedência de Whitaker? O arcebispo de Canterbury é seguido pelo presidente da Câmara dos Pares; o presidente da Câmara dos Pares é seguido pelo arcebispo de York. Todo mundo segue alguém, tal é a filosofia de Whitaker; e a grande coisa é saber quem segue quem. Whitaker sabe, e você que se console com isso, como a Natureza aconselha, ao invés de enraivar-se; mas, se você não puder ser consolada, se tiver de estragar esta hora de paz, pense então na marca na parede. Entendo o jogo da Natureza — sua prontidão para agir como modo de interromper qualquer pensamento que ameace agitar ou causar dor. Daí provém, suponho, nosso leve desprezo pelos homens de ação — homens, presumimos, que não pensam. Seja como for, não faz mal ficar olhando uma marca na parede para pôr um ponto final em nossos desagradáveis pensamentos. De fato, agora que fixei o olhar nela, sinto que me agarrei a uma tábua de salvação; tenho uma satisfatória noção de realidade que de uma vez por todas transforma os dois arcebispos e o presidente da Câmara dos Pares em meras sombras. Eis aqui alguma coisa concreta, definida. Assim, despertando de um sonho de horror à meia-noite, logo a pessoa acende a luz e se mantém quiescente, adorando o gaveteiro, adorando a solidez, adorando a realidade, adorando o mundo impessoal que é prova de alguma existência que não a sua. É disso que queremos estar seguros… A madeira é uma boa coisa na qual pensar. Vem de uma árvore; e as árvores crescem, e não sabemos como crescem. Por anos e anos elas crescem, sem nos dar nenhuma atenção, em campinas, em florestas e à beira dos rios — coisas nas quais, sem exceção, nós gostamos de pensar. As vacas dão chicotadas com o rabo, à sombra delas, nas tardes quentes; elas pintam tão de verde os rios que, quando um frango-d’água mergulha, esperamos vê-lo com as penas todas verdes, quando volta à tona. Gosto de pensar nos peixes que balançam contra a correnteza como bandeiras ao vento; e nos besouros-d’água que lentamente vão erguendo domos de lama sobre o leito do rio. Gosto de pensar na árvore em si: primeiro na íntima e seca sensação de ser madeira; depois na trituração pela tempestade; depois na lenta, deliciosa penetração de seiva. Gosto de pensar nisso também nas noites de inverno, quando me ergo no campo vazio com as folhas todas dobradas, fechando-me sem nada expor de sensível aos projéteis de ferro que vêm da lua, um mastro nu na terra que não para, ao longo de toda a noite, de rodopiar. O canto dos passarinhos deve soar muito alto e estranho em junho; e que frio devem sentir nos pés os insetos, quando fazem seus laboriosos avanços, subindo pelas rugas da casca, ou tomam sol sobre o toldo verde e fino das folhas, olhando reto para a frente com seus olhos vermelhos, cortados em forma de diamante… Uma a uma as fibras estalam sob a imensa pressão fria da terra e vem então o temporal mais recente e os galhos mais altos, caindo, cravam-se na terra de novo, e fundo. Nem assim a vida acaba; para uma árvore, ainda há um milhão de vidas pacientes e atentas em todo o mundo, em quartos de dormir, em barcos, no assoalho, forrando salas onde homens e mulheres sentam-se depois do chá para fumar seus cigarros. Está cheia de pensamentos tranquilos, de pensamentos felizes, esta árvore. Bem que eu gostaria de pegar cada um deles separadamente — mas alguma coisa está atrapalhando. Onde é que eu estava? De que é mesmo que se tratava? Uma árvore? Um rio? A região dos Downs? O Almanaque de Whitaker? Os campos de asfódelos? Não consigo me lembrar de nada. Tudo está se movendo, caindo, deslizando, sumindo… Há uma vasta sublevação da matéria. Alguém está de pé, acima de mim, e diz: “Vou sair um instante para comprar um jornal.” “Hein?” “Se bem que nem adianta comprar jornais… Nunca acontece nada. Maldita guerra; que Deus maldiga esta guerra!… Seja como for, não vejo por que tínhamos de ter um caramujo na parede.” Ah, a marca na parede! Era um caramujo.
- Dom Casmurro vs. Bentinho: Dupla narração em Dom Casmurro.
E aí, aspirantes a demolidores de clássicos? Ana Amélia na área, pronta para mais uma sessão de autópsia literária. Hoje, vamos pegar o bisturi e abrir ao meio um dos nossos maiores tesouros nacionais, mas com um cuidado cirúrgico. Esqueça a pergunta que não quer calar. A questão não é "Capitu traiu ou não traiu?". A verdadeira pergunta, a que separa os escritores amadores dos estrategistas da palavra é: "Quem, diabos, está nos contando essa história?". Pois é. Se você respondeu "Bentinho", acertou metade. Se respondeu "Dom Casmurro", também. A genialidade do Bruxo do Cosme Velho não foi criar um narrador, mas sim dois, aprisionados no mesmo corpo e em guerra declarada pela sua versão da verdade. Desmascarando o Narrador: O Que Dom Casmurro e Os Vestígios do Dia Nos Ensinam Sobre a Memória Vamos direto ao ponto: o Dom Casmurro que narra o livro não é o mesmo Bentinho que vive a história. Existe um abismo de décadas, mágoas e, principalmente, de interesses entre os dois. O livro se apresenta como um projeto de memória, uma tentativa do velho de "atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência". Uma premissa quase nobre, se não fosse uma completa falha, admitida por ele mesmo logo no início: Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. "Falto eu mesmo". Preste atenção nessa confissão. O narrador, o velho Dom Casmurro, nos diz com todas as letras que o protagonista da sua história—o jovem Bentinho—está ausente, é uma lacuna. Ele não está lembrando ; ele está reconstruindo , e todo engenheiro sabe que uma reconstrução pode facilmente alterar a planta original para esconder rachaduras. A narração é um ato de defesa. Dom Casmurro, o advogado, monta um processo meticuloso contra Capitu, Escobar e, indiretamente, contra a própria felicidade que ele perdeu. O jovem Bentinho é sua principal testemunha, mas uma testemunha que não tem voz própria. Suas memórias, suas dúvidas e seus ciúmes são todos filtrados, editados e apresentados pelo promotor Casmurro. Nós, leitores, somos o júri, e recebemos o caso já com as "provas" selecionadas a dedo. Esse truque de dividir o "eu-narrador" do "eu-personagem" é uma das ferramentas mais sofisticadas para criar um narrador não confiável. O autor nos dá a ilusão de intimidade (afinal, é uma narração em primeira pessoa), enquanto nos manipula pelas costas. E se você acha que isso é exclusividade do nosso Machado, está redondamente enganado. Vamos cruzar o Atlântico e dar uma espiada em Os Vestígios do Dia , do prêmio Nobel Kazuo Ishiguro. O livro é narrado por Stevens, um mordomo inglês que, assim como Casmurro, decide revisitar seu passado durante uma viagem. Stevens passou a vida inteira servindo Lord Darlington, um aristocrata que flertou com o nazismo. O dilema de Stevens é tentar justificar uma vida de devoção a um homem moralmente questionável, ao mesmo tempo em que lida com o arrependimento de ter sacrificado um possível amor com a governanta, a Srta. Kenton. A "dignidade" para Stevens é o que a promessa do seminário era para Bentinho: um ideal que justifica a anulação de si mesmo. Ele constrói uma narrativa onde sua abnegação e controle emocional são virtudes supremas, mas, nas entrelinhas, sua humanidade reprimida vaza. Veja como ele descreve o pilar de sua existência: O grande mordomo é grande em virtude de sua capacidade de habitar seu papel profissional — e de habitá-lo até o fim. Não se deixa abalar por acontecimentos externos, por mais surpreendentes, alarmantes ou constrangedores que sejam. Veste seu profissionalismo como um cavalheiro decente veste seu terno: não permitirá que baderneiros ou circunstâncias o arranquem dele em público. Stevens, o narrador, tenta nos convencer de que essa armadura profissional é uma marca de grandeza. No entanto, é essa mesma armadura que o impede de agir quando seu pai está morrendo em um quarto no andar de cima, ou quando a Srta. Kenton, em um ato de desespero e afeto, tenta provocá-lo. O Stevens que narra é o advogado de defesa de uma vida que, no fundo, ele suspeita ter sido um erro. A tragédia está no que ele não diz, nos silêncios, nas justificativas polidas que mal conseguem esconder um coração partido. Tanto Casmurro quanto Stevens são homens que olham para trás e tentam construir um monumento sobre as ruínas de suas vidas. Casmurro constrói um mausoléu para seu amor perdido, culpando Capitu para não ter que encarar sua própria insegurança paralisante. Stevens ergue uma estátua à "dignidade", para não admitir que serviu a um propósito falho e perdeu sua única chance de felicidade. A técnica é a mesma: um narrador no presente (velho, experiente, ferido) reconta a história de seu eu no passado (jovem, ingênuo, cheio de potencial) não como ela foi, mas como ele precisa que ela tenha sido para justificar quem ele se tornou. Entender essa fratura narrativa é crucial. É aqui que a relação entre autor, texto e leitor, a santíssima trindade que tanto prezamos na Letra & Ato , se torna um jogo de alta tensão. Seu narrador não é apenas um porta-voz; ele é uma entidade com agenda, com medos e com o poder de distorcer todo o universo que você criou. Reconhecer isso no seu próprio texto é o primeiro passo para transformá-lo de um simples relato em uma obra de arte complexa e instigante. Quer Escrever Bem? Leia e Leia e Leia... 📚 A Estante de Ana: Reparação de Ian McEwan Se a memória de Casmurro é um processo judicial e a de Stevens é um relatório profissional, a de Briony Tallis é uma arma de destruição em massa. Este livro é uma aula magna sobre as consequências catastróficas de uma narração equivocada e a tentativa de uma vida inteira para consertar um erro através da ficção. Leitura obrigatória para quem quer entender o poder e o perigo de contar uma história. Exportar para as Planilhas ☕ Um café e uma primeira conversa Seu manuscrito, assim como a memória de Bentinho, tem duas versões: a que você viveu ao escrever e a que o leitor vai encontrar. Muitas vezes, um abismo separa as duas. Uma palavra mal colocada, uma motivação que fica subentendida apenas para você, um silêncio que soa como confissão. Essas são as "rachaduras" que podem comprometer a estrutura da sua obra. Nosso trabalho na Letra & Ato não é apenas corrigir a gramática. É estabelecer um diálogo com seu texto, encontrar essas fissuras e entender a intenção por trás de cada escolha. Queremos ser o primeiro leitor crítico e parceiro da sua história, ajudando a garantir que a versão que chega ao mundo é exatamente a que você sonhou em contar. Que tal nos enviar um trecho? Vamos tomar esse café e conversar sobre o potencial que vive nas entrelinhas da sua narrativa. No final, toda escrita é uma tentativa de organizar o caos da memória; a revisão é o ato de garantir que você não se tornou o vilão da sua própria história. Letra & Ato Tradição | Precisão Editorial | Sensibilidade © 2024-2025 Letra & Ato (antiga Revisão Dialogal) . Todos os direitos reservados.
- Leo Astigarraga - Quando Os dias Ganham Cor
Vídeo-depoimento de Leo Astigarraga, autor de Quando os Dias Ganham Cor. Vídeo-depoimento de Leo Astigarraga, autor de Quando os Dias Ganham Cor.
- Segunda Vez - Conto de Julio Cortázar
Segunda vez - Julio Cortázar Não mais que os esperávamos, cada um tinha seu dia e hora, mas claro, sem pressa, fumando devagar, de quando em quando o negro López vinha com o café e então parávamos de trabalhar e comentávamos as novidades, quase sempre a mesma coisa, a visita do chefe, as mudanças em cima, as performances em San Isidro. Eles, claro, não podiam saber que estávamos esperando, o que se chama esperando, essas coisas deviam acontecer sem estardalhaço, ajam com calma, palavra do chefe, a cada momento ele repetia por via das dúvidas, vão piano piano, e depois era fácil, se desse algum galho não cobrariam de nós, os responsáveis estavam lá em cima e o chefe era a lei, fiquem calmos, rapazes, se houver problema aqui eu é que dou as caras, a única coisa que peço e que não se enganem de pessoa, primeiro a averiguação para não errar e depois podem agir. Francamente não davam trabalho, o chefe tinha escolhido escritórios funcionais para que não se amontoassem, e nós os recebíamos um a um, como se deve, com todo o tempo necessário. Para gente educada como nós, cara, o chefe dizia volta e meia e era verdade, tudo sincronizado assim nas IBM, aqui se trabalhava com vaselina, nada de pressa nem de vão em frente. Tínhamos tempo para os cafezinhos e os palpites do domingo, e o chefe era o primeiro a vir buscar as barbadas que para isso o magro Bianchetti era propriamente um oráculo. Todos os dias era a mesma coisa, chegávamos com os jornais, o negro López trazia o primeiro café e logo começavam a aparecer para o trâmite. A convocação dizia isso, trâmite que lhe concerne, nós só aí esperando. Agora isso é verdade, mesmo que venha em papel amarelo, uma convocação sempre tem um ar sério; por isso María Elena a olhara muitas vezes em sua casa, o carimbo verde rodeando a assinatura ilegível e as indicações de data e lugar. No ônibus voltou a tirá-la da bolsa e deu corda ao relógio para mais segurança. Convocavam-na a um escritório da Rua Maza, era estranho que ali houvesse um ministério mas sua irmã dissera que estavam instalando escritórios em qualquer parte porquê os ministérios já estavam ficando pequenos, e logo que desceu do ônibus viu que devia ser verdade, o bairro não tinha nada de especial, com casas de três; ou quatro andares e sobretudo muito comércio atacadista, e até algumas árvores das poucas que sobravam na zona. "Pelo menos deve ter uma bandeira", pensou María Elena ao se aproximar da quadra setecentos, pensando bem era como as embaixadas que estavam nos bairros residenciais mas se distinguiam de longe pelo pano colorido em alguma sacada. Embora o número figurasse bem claro na convocação, surpreendeu-a não ver a bandeira nacional e por um momento ficou na esquina (era muito cedo, podia fazer hora) e sem nenhuma razão perguntou na banca de jornais se nessa quadra ficava a Direção. — Claro que sim — disse o homem —, ali, na metade da quadra, mas por que não espera um pouquinho para me fazer companhia, veja como estou sozinho. — Na volta — sorriu María Elena caminhando sem pressa e consultando uma vez mais o papel amarelo. Quase não havia trêfego nem gente, um gato diante de um armazém e uma gorda com uma menina que saiam de um saguão. Os poucos carros estavam estacionados na altura da Direção, quase todos com alguém ao volante, lendo jornal ou fumando. A entrada era estreita como todas na quadra, com um saguão de ladrilhos e a escada ao fundo; a placa na porta parecia apenas a de um médico ou um dentista, suja e com um papel colado na parte de baixo para cobrir algumas inscrições. Era estranho que não tivesse elevador, um terceiro andar e precisar subir a pé com esse papel tão sério, carimbo verde, a assinatura e tudo mais. A porta do terceiro andar estava fechada e não se via nem campainha nem placa. María Elena experimentou o trinco e a porta se abriu sem ruído: a fumaça do fumo chegou-lhe antes dos ladrilhos esverdeados do corredor e os bancos dos dois lados com gente sentada. Não eram muitos, mas com essa fumaça e o corredor tão estreito parecia que se tocavam com os joelhos, as duas anciãs, o careca e o rapaz de gravata verde. Era certo que tinham estado falando para matar o tempo, bem ao abrir a porta María Elena alcançou um final de frase de uma das senhoras, mas como sempre ficaram calados de repente olhando a que chegava por último, e também como sempre e sentindo-se muito boba María Elena ficou vermelha e mal lhe saiu a voz para dizer bom-dia e permanecer de pé ao lado da porta até que o rapaz lhe fez um sinal, mostrando o banco vazio a seu lado justamente quando se sentava, agradecendo, a porta da outra extremidade do corredor se abriu para deixar sair um homem de cabelo vermelho que abriu caminho entre os joelhos dos outros sem se preocupar em pedir licença e o funcionário manteve a porta aberta com um pé até que uma das senhoras se levantou com dificuldade e desculpando-se passou entre María Elena e o careca; a porta da saída e a do escritório se fecharam quase ao mesmo tempo, e os que ficavam começaram de novo a falar, esticando-se um pouco nos bancos que rangiam. Cada um tinha seu assunto, como sempre, o careca a lentidão dos trâmites, se é assim na primeira vez que é que se pode esperar, me diga, mais de meia hora para, quando muito, o que, só umas quatro perguntas e tchau, pelo menos é o que imagino. — Não acredite nisso — disse o rapaz da gravata verde —, eu é a segunda vez e garanto que não é tão rápido, até que copiem tudo a máquina e então a gente não se lembra bem de uma data, essas coisas, no final demora bastante. O careca e a anciã ouviam-no interessados porque para eles era evidentemente a primeira vez, a mesma coisa com María Elena, embora não se sentisse com direito de entrar na conversa. O careca queria saber quanto tempo passava entre a primeira e a segunda convocação, e o rapaz explicou que em seu caso tinha sido coisa de três dias. Mas por que duas convocações? quis perguntar María Elena, e outra vez sentiu que o vermelho lhe subia ao rosto, então esperou que alguém falasse com ela e lhe desse confiança, que a deixasse integrar-se ao grupo, não ser mais a última. A anciã tirara um vidrinho talvez de sais e o cheirava suspirando. Tanta fumaça podia estar incomodando e o rapaz se ofereceu para apagar o cigarro e o careca disse claro, esse corredor era uma vergonha, era melhor apagarem os cigarros se se sentia mal, mas a senhora disse que não, um pouco de cansaço só, passava em seguida, em sua casa o marido e os filhos fumavam o tempo todo, quase não noto. María Elena que também tivera vontade de tirar um cigarro viu que os homens apagavam os seus, que o rapaz o esmagava com a sola do sapato, sempre se fuma demais quando se tem que esperar, na outra vez tinha sido pior porque havia sete ou oito pessoas antes dele, e no fim não se via mais nada no corredor de tanta fumaça. — A vida é uma sala de espera — disse o careca, pisando no cigarro com muito cuidado e olhando as próprias mãos como se já não soubesse o que fazer com elas, e a anciã suspirou uma concordância, de muitos anos e guardou o vidrinho quando a porta do fundo se abria e a outra senhora saia com esse ar que todos lhe invejaram, o bom-dia quase compadecido ao chegar a porta de saída. Mas então não demorava tanto, pensou María Elena, três pessoas antes dela, calculemos três quartos de hora, claro que em uma dessas o trâmite se fazia mais demorado com alguns, o rapaz já estivera ali uma primeira vez e o dissera. Quando, porém, o careca entrou no escritório, María Elena animou-se a perguntar para ter mais certeza, e o rapaz ficou pensando e depois disse que na primeira vez alguns tinham demorado muito e outros menos, nunca se podia saber. A anciã chamou a atenção para o fato de que a outra senhora tinha saído quase em seguida, mas o senhor de cabelo vermelho tinha demorado uma eternidade. — Ainda bem que agora somos poucos — disse María Elena —, esses lugares deprimem. — É preciso encarar essas coisas com filosofia — disse o rapaz —, não se esqueça que precisara voltar, assim é melhor que fique tranquila. Quando vim pela primeira vez não tinha ninguém com quem falar, éramos uma porção, mas não sei, não se comunicavam, e em compensação hoje, desde que cheguei, o tempo passa depressa porque a gente troca ideias. María Elena gostou de continuar conversando com o rapaz e a senhora quase não sentiu passar o tempo até que o careca saiu e a senhora se levantou com uma rapidez que os outros não teriam imaginado em sua idade, a coitada queria acabar depressa com os trâmites. — Bem, agora nós — disse o rapaz. — Não a incomoda se fumo um cigarrinho? Não aguento mais, mas aquela senhora parecia tão perturbada... — Eu também estou com vontade de fumar. Aceitou o cigarro que ele lhe oferecia e se disseram os nomes, onde trabalhavam, sentiam-se bem em trocar impressões esquecendo-se do corredor, do silêncio que, por momentos, parecia demasiado, como se as ruas e as pessoas estivessem muito longe. María Elena também tinha morado em Floresta mas quando menina, agora morava em Constitución. Carlos não gostava desse bairro, preferia o oeste, melhor ar, as árvores. Seu ideal teria sido viver em Villa del Parque, quando casar talvez alugue um apartamento por aqueles lados, o futuro sogro tinha prometido ajudá-lo, era uma pessoa com muitas relações e com uma dessas talvez conseguisse algo. — Eu não sei por que, mas alguma coisa me diz que vou viver toda a minha vida em Constitución — disse María Elena. — Não é tão ruim, apesar de tudo. E se alguma vez... Viu abrir-se a porta do fundo e olhou quase surpreendida o rapaz que lhe sorria ao se levantar, está vendo como o tempo passou conversando, a senhora despedia-se deles amavelmente, parecia tão contente por ir embora, todo mundo tinha um ar mais jovem e mais ágil ao sair, como se lhes tivessem tirado um peso de cima, o trâmite acabado, uma diligência a menos e lá fora a rua, os cafés onde talvez entrariam para tomar um trago ou um chá e se sentirem realmente do outro lado da sala de espera e dos formulários. Agora o tempo se tornaria mais longo para María Elena sozinha, embora se tudo continuasse assim Carlos sairia logo, mas numa dessas demorava mais que os outros porque era a segunda vez e sabe-se lá que trâmites teria. Quase não compreendeu no princípio quando viu abrir-se a porta e o funcionário a olhou e fez um gesto com a cabeça para que passasse. Pensou então que era assim mesmo, que Carlos precisaria ficar mais tempo enchendo papéis e que, enquanto isso, se ocupariam dela. Cumprimentou o funcionário e entrou no escritório; mal tinha passado a porta quando outro funcionário lhe mostrou uma cadeira diante de uma escrivaninha negra. Havia vários funcionários no escritório, só homens, mas não viu Carlos. Do outro lado da escrivaninha um funcionário de cara doentia olhava uma planilha; sem levantar os olhos estendeu a mão e María Elena custou a compreender que lhe pedia a convocação, de repente entendeu e a procurou um pouco distraída, murmurando desculpas, tirou duas ou três coisas da bolsa até encontrar o papel amarelo. — Vá preenchendo isto — disse o funcionário, passando-lhe um formulário. — Com letra de imprensa, bem claro. Eram as tolices de sempre, nome e sobrenome, idade, sexo, domicílio. Entre duas palavras María Elena sentiu como se algo a incomodasse, algo que não estava de todo claro. Não na planilha, fácil de preencher os vazios: algo fora, algo que faltava ou não estava em seu lugar. Parou de escrever e olhou ao redor, as outras mesas com os funcionários trabalhando ou falando entre si, as paredes sujas com cartazes e fotografias, as duas janelas, a porta por onde entrara, a única porta do escritório. Profissão, e ao lado a linha pontilhada; automaticamente preencheu o vazio. A única porta do escritório, mas Carlos não estava ali. Tempo de serviço. Com maiúsculas, bem claro. Quando assinou embaixo, o funcionário olhava-a como se tivesse demorado demais a preencher a planilha. Estudou um momento o papel, não encontrou erros e o guardou em uma carpeta. O resto foram perguntas, algumas inúteis porque ela já as havia respondido na planilha, mas também sobre a família, as mudanças de residência nos últimos anos, os seguros, se viajava com frequência e para onde, se havia tirado passaporte ou pensava tirá-lo. Ninguém parecia preocupar-se muito com as respostas, e de qualquer modo o funcionário não as anotava. Bruscamente disse a María Elena que podia sair e que voltasse três dias depois às onze; não precisava convocação por escrito, mas que não esquecesse. — Sim, senhor — disse María Elena levantando-se —, então na quinta-feira às onze. — Passe bem — disse o funcionário sem olhar para ela. No corredor não havia ninguém, e percorrê-lo foi, como para todos os outros, um apressar-se, um respirar aliviado, uma vontade de chegar à rua e deixar tudo aquilo para trás. María Elena abriu a porta da saída e, começando a descer as escadas, pensou em Carlos, era estranho que Carlos não tivesse saído como os outros. Era estranho porque o escritório tinha apenas uma porta, claro que às vezes não se repara bem, porque isso não podia ser, o funcionário abrira a porta para que ela entrasse e Carlos não passara por ela, não saíra primeiro como todos os outros, o homem de cabelo vermelho, as senhoras, todos menos Carlos. O sol estatelava-se contra a calçada, era o ruído e o ar da rua; María Elena deu uns passos e ficou parada ao lado de uma árvore, em um lugar onde não havia carros estacionados. Olhou para a porta da casa, disse a si mesma que esperaria um momento para ver Carlos sair. Não podia ser que Carlos não saísse, todos tinham saído ao terminar o trâmite. Pensou que talvez ele se demorasse porque era o único que viera pela segunda vez; sabe-se lá, talvez fosse isso. Parecia muito estranho não tê-lo visto no escritório embora pudesse haver ali uma porta dissimulada pelos cartazes, algo que não notara, mas assim mesmo era estranho porque todo mundo tinha saído pelo corredor como ela, todos os que tinham vindo pela primeira vez saíram, pelo corredor. Antes de seguir caminho (esperara um momento, mas não podia mais continuar assim) pensou que precisaria voltar na quinta-feira. Talvez então as coisas mudassem e a fizessem sair pelo outro lado embora não soubesse por onde nem por que. Ela não, claro, mas nós sim sabíamos, nós a estaríamos esperando, a ela e aos outros, fumando devagarinho e conversando enquanto o negro López preparava outro dos tantos cafés da manhã.
- Dissecando Rubem Fonseca: A Força (Bruta) da Escrita
E aí, pessoal que sua em cima da página em branco! Ana Amélia na área, pronta para mais uma sessão de autópsia literária. Hoje, nosso "corpo" na mesa de cirurgia é um dos mestres da porrada verbal, o grande e temido Rubem Fonseca. E a peça escolhida para a nossa análise é o conto "A Força Humana" . Sabe aquele tipo de texto que te agarra pelo colarinho, te chacoalha e te joga contra a parede? Pois é. Fonseca não escreve para afagar, ele escreve para nocautear. E, como bons masoquistas literários que somos, queremos aprender a bater (e a apanhar) com a mesma elegância. Mas, antes de começarmos a dissecação, vamos à nossa regra de ouro. Agora, vistam seus jalecos. É hora de pegar o bisturi. O Realismo Brutalista em "A Força Humana" Vamos direto ao ponto, sem anestesia, que é como o mestre gosta. Peguem o comecinho do conto: "Eu queria seguir em frente mas não podia. Ficava parado no meio daquele monte de crioulos — uns balançando o pé, ou a cabeça, outros mexendo os braços; mas alguns, como eu, duros como um pau, fingindo que não estavam ali, disfarçando que olhavam um disco na vitrina, envergonhados. É engraçado, um sujeito como1 eu sentir vergonha de ficar ouvindo música na porta da loja de discos. Se tocam alto é pras pessoas ouvirem; e se não gostassem da gente ficar ali ouvindo era só des2ligar e pronto: todo mundo desguiava logo. Além disso, só tocam música legal, daquelas que você tem que ficar ouvindo e que faz mulher boa andar diferente, como cavalo do exército na frente da banda." "A questão é que passei a ir lá todos os dias. Às vezes eu estava na janela da academia do João, no intervalo de um exercício, e lá de cima via o montinho na porta da loja e não aguentava — me vestia correndo, enquanto o João perguntava, “aonde é que você vai, rapaz? você ainda não terminou o agachamento”, e ia direto para lá. O João ficava maluco com esse troço, pois tinha cismado que ia me preparar para o concurso do melhor físico do ano e queria que eu malhasse quatro horas por dia e eu parava no meio e ia para a calçada ouvir música. “Você está maluco”, dizia, “assim não é possível, eu acabo me enchendo com você, está pensando que eu sou palhaço?”" Analisado o trecho, vamos aos "truques" que fazem dele um soco no estômago do leitor. A Anatomia do Nocaute: Técnicas de Rubem Fonseca O Soco Direto: Linguagem sem Firulas Perceberam a ausência de palavras "bonitas"? Fonseca não está aqui para fazer poesia. A escolha lexical é crua, direta, quase jornalística. Expressões como "duros como um pau", "desguiava logo" e "o João ficava maluco com esse troço" jogam o leitor diretamente na cabeça do narrador. Não há um filtro de polidez. É a vida como ela é, ou melhor, como o personagem a sente. Para seu caderninho: Esqueça o dicionário de sinônimos. Às vezes, a palavra mais simples e direta é a que carrega mais força. A veracidade da voz do seu personagem vale mais que qualquer preciosismo. O Corpo Fala: Ação em Vez de Descrição Notem que não temos parágrafos e mais parágrafos sobre a angústia existencial do personagem. O que ele faz? Sente um incômodo, uma paralisia, e a reação é física: ele vai para a academia malhar. A "força humana" do título não é (apenas) uma força moral, mas uma força brutal, física, uma tentativa de sentir algo, de ter controle sobre o próprio corpo quando não se tem controle sobre a vida. A inquietação dele não é descrita , ela é mostrada pela ação de abandonar o treino para ouvir música na rua. Para seu caderninho: Seus personagens têm um corpo. Use-o. Em vez de dizer "ele estava triste", mostre-o chutando uma lata na rua. Em vez de "ela estava ansiosa", mostre-a roendo as unhas até sangrar. É o bom e velho "mostre, não conte", mas com um diploma de MMA. A Trilha Sonora da Rua: O Ritmo da Prosa Leiam em voz alta. As frases são curtas, cortadas, com o ritmo de uma cidade pulsante. "Merda. Mudamos de canal, prum bangue-bangue. Outra bosta.". A pontuação é simples, quase ofegante. Isso cria uma sensação de urgência e imediatismo. Não é uma narração distante, é um fluxo de consciência que nos arrasta para dentro da cena. Para seu caderninho: Pense no ritmo do seu texto como uma trilha sonora. Frases longas e sinuosas para momentos de reflexão. Frases curtas e diretas para cenas de ação ou tensão. A pontuação é a sua bateria. Use-a. Pegue seu diploma de Brutalismo Estudar Rubem Fonseca é como treinar com um mestre de artes marciais. Dói, mas você aprende. A lição de "A Força Humana" é clara: a literatura pode e deve ter a força de um soco bem dado. Não tenham medo de sujar as mãos. De usar a linguagem da rua. De construir personagens que agem mais do que pensam. Deixem a "literatura com L maiúsculo" para os acadêmicos e escrevam com as vísceras. Seus leitores, nocauteados, agradecerão. Até a próxima autópsia! Beijos e cotoveladas, Ana Amélia.
- 8 Dicas para Escrever Melhor: Faça de seu Leitor um Coautor
Escrever melhor sempre deve ser seu objetivo! Estamos condenados à servidão aos leitores! Para agradar a seus senhores e trubinar a experiência de leitura de um romance, você dever usar, além de sua sensibilidade, técnicas de escrita criativa que convidam o leitor a uma participação ativa na descoberta da narrativa. O eixo interpretativo sempre pende para o leitor. Só resta interagir com ele e trazê-lo para "dentro do livro" como coautor. Em vez de antecipar os acontecimentos ou explicar demais, essas técnicas deixam espaço para a imaginação, despertando a curiosidade sem revelar todos os segredos de antemão. Isso evita dois problemas comuns: a antecipação – que tira o prazer da surpresa –, e a explicação excessiva – que pode transmitir a ideia de que o leitor não é capaz de interpretar por si mesmo. 1. Mostrar, Não Contar Em vez de explicar diretamente os sentimentos ou os acontecimentos, o autor deve fazer com que o leitor "veja" e "sinta" a cena por meio de descrições sensoriais e ações. Essa abordagem favorece a identificação emocional e a imersão na história. Exemplo: Ernest Hemingway, com sua "teoria do iceberg", apresenta uma narrativa concisa em que o que não é dito é tão importante quanto o que aparece na superfície. Essa técnica faz com que o leitor atue quase como um detetive, completando as lacunas com suas próprias interpretações. 2. Suspense e Revelação Gradual A ideia é dosar a entrega de informações: colher pistas que instiguem o leitor sem entregar o roteiro completo. O uso cuidadoso do foreshadowing (antecipação sutil) permite que pequenos indícios sejam espalhados ao longo do texto, criando uma tensão que se resolve de forma natural mais adiante. Exemplo: Agatha Christie foi mestra em semear pequenos indícios nas tramas de seus romances policiais. Dessa forma, o leitor sente que, ao juntar as peças, a solução do mistério é resultado de sua própria leitura atenta, e não de uma revelação imposta . 3. Diálogos Naturais e Indiretos Os diálogos são ferramentas poderosas para revelar a personalidade dos personagens, seus conflitos internos e até mesmo traços da história sem precisar recorrer a longas explicações narrativas. Conversas autênticas e sutis podem marcar as intenções e emoções sem descrever explicitamente todos os detalhes. Exemplo: Jane Austen utiliza diálogos carregados de ironia e crítica social que, ao mesmo tempo que entretêm, permitem ao leitor deduzir nuances dos personagens e da trama. Essa técnica respeita a inteligência do leitor, convidando-o a inferir significados que vão além do óbvio . 4. Construção de Personagens Complexos e Ambíguos Ao desenvolver personagens com motivações e conflitos internos que não são totalmente revelados de imediato, o autor torna o processo de descobrimento um convite à interpretação. Personagens multifacetados criam um vínculo com o leitor, que se sente parte da evolução da história. Exemplo: Machado de Assis constrói personagens como Bentinho e Capitu em Dom Casmurro de forma ambígua, sem esclarecer completamente as intenções e sentimentos, o que provoca debates e múltiplas interpretações entre os leitores . 5. Linguagem Simbólica e Metafórica O uso de metáforas, símiles e outras figuras de linguagem pode adicionar camadas de significado à narrativa sem explicitar cada detalhe, mantendo o leitor desafiado a explorar as relações simbólicas da história. Exemplo: Em Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez mescla o real e o fantástico através de uma escrita poética e repleta de símbolos. Essa técnica permite que o leitor sinta a magia do enredo e interprete os elementos simbólicos de forma pessoal. 6. Estrutura Narrativa Não-Linear Romper com a linearidade pode levar o leitor a montar a cronologia dos eventos e a entender as relações entre as partes da história de forma mais profunda. 7. Utilização do Espaço e do Silêncio A inserção de pausas narrativas e de momentos de silêncio pode intensificar a atmosfera do romance e dar ênfase a momentos-chave, como faz Margaret Atwood em muitos de seus textos. 8. Narrador Confiável vs. Narrador Não Confiável Esse recurso pode desafiar o leitor a questionar as informações apresentadas, enriquecendo a experiência de leitura ao criar múltiplas camadas de interpretação, recurso que Clarice Lispector utiliza com frequência. Bentinho, um dos narradores de Dom Casmurro (Sim, são dois: Dom Casmurro e Bentinho, apesar de serem a mesma pessoa) de Machado de Assis também é um bom exemplo de narrador não confiável. Escrever melhor exige esforço extra, mas explorar essas técnicas e integrá-las de forma harmoniosa no seu romance pode transformar a narrativa em uma experiência única e instigante, onde cada página convida o leitor a descobrir algo novo sem que tudo esteja previamente explicado. Esses métodos preservam a magia da história e mostram respeito pela inteligência e imaginação de quem lê. Você cria uma leitura dinâmica e interativa, onde o leitor é constantemente convidado a participar ativamente da construção do sentido da narrativa. Em vez de receber um roteiro pré-definido, o leitor vivencia a descoberta, o que torna a história muito mais envolvente e memorável.
- Nélida Piñon: A Caçadora de Javalis! "I Love My Husband" e o Poder do Subtexto.
O Guia Definitivo do Subtexto na Escrita Criativa E aí, pessoal da pena e do pixel? Ana Amélia na área, pronta para mais uma autópsia literária. Hoje, vamos falar de Nélida Piñon, a Caçadora de Javali em um de meus contos preferidos: I Love My Husband. E de um dos meus truques favoritos, uma daquelas técnicas que separam os escritores amadores dos... bem, dos que sabem o que estão fazendo. Estou falando da arte de fazer seu personagem dizer uma coisa, enquanto a alma dele grita outra completamente diferente. É o poder do subtexto . Aquele delicioso espaço entre a palavra dita e o sentimento real. E o conto que eu li essa semana é uma aula magna sobre o assunto. Vamos ao conto I Love My Husband Nélida Piñon EU AMO MEU MARIDO. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre mal-dormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado. Depois, arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe unicamente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranquilo, capaz de enfrentar a vida lá fora e trazer de volta para a sala de visita um pão sempre quentinho e farto. Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis. A mim também me saúdam por alimentar um homem que sonha com casas-grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o país progredir. E é por isto que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar. Deixo que o sol entre pela casa, para dourar os objetos comprados com esforço comum. Embora ele não me cumprimente pelos objetos fluorescentes. Ao contrário, através da certeza do meu amor, proclama que não faço outra coisa senão consumir o dinheiro que ele arrecada no verão. Eu peço então que compreenda minha nostalgia por uma terra antigamente trabalhada pela mulher, ele franze o rosto como se eu lhe estivesse propondo uma teoria que envergonha a família e a escritura definitiva do nosso apartamento. O que mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão de bens? E dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém tinha o direito de construir, percebi que a generosidade do homem habilitava-me a ser apenas dona de um passado com regras ditadas no convívio comum. Comecei a ambicionar que maravilha não seria viver apenas no passado, antes que este tempo pretérito nos tenha sido ditado pelo homem que dizemos amar. Ele aplaudiu o meu projeto. Dentro de casa, no forno que era o lar, seria fácil alimentar o passado com ervas e mingau de aveia, para que ele, tranquilo, gerisse o futuro. Decididamente, não podia ele preocupar-se com a matriz do meu ventre, que devia pertencer-lhe de modo a não precisar cheirar o meu sexo para descobrir quem mais, além dele, ali estivera, batera-lhe à porta, arranhara suas paredes com inscrições e datas. Filho meu tem que ser só meu, confessou aos amigos no sábado do mês que recebíamos. E mulher tem que ser só minha e nem mesmo dela. A ideia de que eu não podia pertencer-me, tocar no meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o primeiro sobressalto na fantasia do passado em que até então estivera imersa. Então o homem, além de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre para viver a vida a que ele apenas tinha acesso, precisava também atar minhas mãos, para minhas mãos não sentirem a doçura da própria pele, pois talvez esta doçura me ditasse em voz baixa que havia outras peles igualmente doces e privadas, cobertas de pêlo felpudo, e com a ajuda da língua podia lamber-se o seu sal? Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de tigre que reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto à verdade do meu sexo. Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher unicamente pelas garras longas e por revesti-las de ouro, prata, o ímpeto do sangue de um animal abatido no bosque? Ou porque o homem adorna-me de modo a que quando tire estas tintas de guerreira do rosto surpreende-se com uma face que lhe é estranha, que ele cobriu de mistério para não me ter inteira? De repente, o espelho pareceu-me o símbolo de uma derrota que o homem trazia para casa e tornava-me bonita. Não é verdade que te amo, marido? perguntei-lhe enquanto lia os jornais, para instruir-se, e eu varria as letras de imprensa cuspidas no chão logo após ele assimilar a notícia. Pediu, deixe-me progredir, mulher. Como quer que eu fale de amor quando se discutem as alternativas econômicas de um país em que os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um trabalho de escravo. Eu lhe disse então, se não quer discutir o amor, que afinal bem pode estar longe daqui, ou atrás dos móveis para onde às vezes escondo a poeira depois de varrer a casa, que tal se após tantos anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa? Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra futuro com cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia de uma aventura africana recém-iniciada naquele momento. Seguida por um cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark Gable, atraído pelo meu cheiro e do animal em convulsão, ia pedindo de joelhos o meu amor. Sôfrega pelo esforço, eu sorvia água do rio, quem sabe em busca da febre que estava em minhas entranhas e eu não sabia como despertar. A pele ardente, o delírio, e as palavras que manchavam os meus lábios pela primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, enquanto o pajé salvava-me a vida com seu ritual e seus pêlos fartos no peito. Com a saúde nos dedos, da minha boca parecia sair o sopro da vida e eu deixava então o Clark Gable amarrado numa árvore, lentamente comido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me assaltara as forças, evitando as quedas d’água, aos gritos proclamando liberdade, a mais antiga e miríade das heranças. O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranquilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto que você começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apagando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te? Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a fumaça do cigarro com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria homem como ele no nosso edifício de dezoito andares e três portarias. Nas reuniões de condomínio, a que estive presente, era ele o único a superar os obstáculos e perdoar aos que o haviam magoado. Recriminei meu egoísmo, ter assim perturbado a noite de quem merecia recuperar-se para a jornada seguinte. Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate. Ele aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do balanço da firma ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos gastos. Se contasse com a minha colaboração, dispensaria o sócio em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria sonhado tão alto. Encarregava-me eu à distância da sua capacidade de sonhar. Cada sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal direito, eu pagava a vida com cheque que não se poderia contabilizar. Ele não precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeição dos sentimentos, que lhe bastava continuar em minha companhia para querer significar que me amava, eu era o mais delicado fruto da terra, uma árvore no centro do terreno de nossa sala, ele subia na árvore, ganhava-lhe os frutos, acariciava a casca, podando seus excessos. Durante uma semana bati-lhe à porta do banheiro com apenas um toque matutino. Disposta a fazer-lhe novo café, se o primeiro esfriasse, se esquecido ficasse a olhar-se no espelho com a mesma vaidade que me foi instilada desde a infância, logo que se confirmou no nascimento tratar-se de mais uma mulher. Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condição feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento da mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo. Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata à palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao não se cumprir a história da mulher, não lhe sendo permitida a sua própria biografia, era-lhe assegurada em troca a juventude. Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre. Eu não sabia como contornar o júbilo que me envolvia com o peso de um escudo, e ir ao seu coração, surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu não ambicionara antes, por distração talvez. E todo este troféu logo na noite em que ia converter-me em mulher. Pois até então sussurravam-me que eu era uma bela expectativa. Diferente do irmão que já na pia batismal cravaram-lhe o glorioso estigma de homem, antes de ter dormido com mulher. Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido seu sexo pelo homem. Antes dele a mãe insinuou que o nosso sexo mais parecia uma ostra nutrida de água salgada, e por isso vago e escorregadio, longe da realidade cativa da terra. A mãe gostava de poesia, suas imagens sempre frescas e quentes. Meu coração ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo que me haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no cotidiano acomodado. As mãos do marido me modelariam até os meus últimos dias e como agradecer-lhe tal generosidade? Por isso talvez sejamos tão felizes como podem ser duas criaturas em que uma delas é a única a transportar para o lar alimento, esperança, a fé, a história de uma família. Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens, porque ele sempre a trouxe traduzida. Não preciso interpretar os fatos, incorrer em erros, apelar para as palavras inquietantes que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem são aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que assimilar um vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento. Assim fui aprendendo que a minha consciência que está a serviço da minha felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido. É seu encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de naufragar às vezes, ir ao fundo do mar em busca das esponjas. E para que me serviriam elas senão para absorver meus sonhos, multiplicá-los no silêncio borbulhante dos seus labirintos cheios de água do mar? Quero um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme algumas vezes numa torta de chocolate, para ele comer com os olhos brilhantes, e sorriremos juntos. Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que não é o meu, mergulho numa exaltação dourada, caminho pelas ruas sem endereço, como se a partir de mim, e através do meu esforço, eu devesse conquistar outra pátria, nova língua, um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro, olho os que passam com um apetite de que não me envergonharei mais tarde. Felizmente, é uma sensação fugaz, logo busco o socorro das calçadas familiares, nelas a minha vida está estampada. As vitrines, os objetos, os seres amigos, tudo enfim orgulho da minha casa. Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu marido. Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais tentações. Ele parece perdoar-me a distância, aplaude minha submissão ao cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. Confesso que esta ânsia me envergonha, não sei como abrandá-la. Não a menciono senão para mim mesma. Nem os votos conjugais impedem que em escassos minutos eu naufrague no sonho. Estes votos que ruborizam o corpo mas não marcaram minha vida de modo a que eu possa indicar as rugas que me vieram através do seu arrebato. Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não suportaria o peso dessa confissão. Ou que lhe dissesse que nessas tardes penso em trabalhar fora, pagar as miudezas com meu próprio dinheiro. Claro que estes desatinos me colhem justamente pelo tempo que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse algumas vezes e com razão. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou para sempre mergulhada. Não posso reclamar. Todos os dias o marido contraria a versão do espelho. Olho-me ali e ele exige que eu me enxergue errado. Não sou em verdade as sombras, as rugas com que me vejo. Como o pai, também ele responde pela minha eterna juventude. É gentil de sentimentos. Jamais comemorou ruidosamente meu aniversário, para eu esquecer de contabilizar os anos. Ele pensa que não percebo. Mas, a verdade é que no fim do dia já não sei quantos anos tenho. E também evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, já não visto os modelos de antes. Tenho os vestidos guardados no armário, para serem discretamente apreciados. às sete da noite, todos os dias, ele abre a porta sabendo que do outro lado estou à sua espera. E quando a televisão exibe uns corpos em floração, mergulha a cara no jornal, no mundo só nós existimos. Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que não é o dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido. O Contrato de Amor e Outras Prisões A história começa com a frase mais assertiva que uma esposa poderia dizer: "EU AMO MEU MARIDO". Letras garrafais e tudo. Parece o início de um romance cor-de-rosa, certo? Errado. Logo no primeiro parágrafo, a narradora descreve o ritual matinal do café com uma amargura que chega a dar um gosto metálico na boca. O "amor" que ela professa é, na verdade, a grade da sua cela. O autor (ou autora, a obra é um mistério para mim) constrói uma personagem que foi sistematicamente convencida de que sua anulação é a maior prova de amor. O marido é o dono do futuro, dos bens, do corpo dela e até do passado dela. A ela, resta o papel de "sombra", de guardiã de uma felicidade que não lhe pertence. Mas a genialidade está em como a verdadeira natureza dela vaza pelas frestas. A rebeldia não vem em discursos, mas em surtos de imaginação, em fantasias vívidas e violentas que contrastam brutalmente com sua vida de bibelô doméstico. E o estopim para a mais reveladora dessas fantasias é uma única e perigosa palavra: "futuro". A Sobremesa Proibida: Quando a Verdade Escapa O clímax do conflito interno da personagem acontece quando, quase por acidente, ela oferece ao marido a palavra "futuro" como se fosse uma sobremesa. A reação dele é de pânico, e a dela é a de recuar. Mas dentro de sua mente, a palavra desencadeia uma revolução. É aqui que o autor nos mostra quem ela realmente é. Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra futuro com cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia de uma aventura africana recém-iniciada naquele momento. Seguida por um cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark Gable, atraído pelo meu cheiro e do animal em convulsão, ia pedindo de joelhos o meu amor. Sôfrega pelo esforço, eu sorvia água do rio, quem sabe em busca da febre que estava em minhas entranhas e eu não sabia como despertar. A pele ardente, o delírio, e as palavras que manchavam os meus lábios pela primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, enquanto o pajé salvava-me a vida com seu ritual e seus pêlos fartos no peito. Com a saúde nos dedos, da minha boca parecia sair o sopro da vida e eu deixava então o Clark Gable amarrado numa árvore, lentamente comido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me assaltara as forças, evitando as quedas d’água, aos gritos proclamando liberdade, a mais antiga e miríade das heranças. Analisem essa belezura. É um parágrafo que vale por um tratado de psicologia. Enquanto o marido chora por causa de uma palavra, a mente dela explode em uma fantasia de poder, caça, sensualidade e, finalmente, liberdade . Ela não está apenas sonhando; está construindo uma identidade alternativa e selvagem. Ela mata o predador, dispensa o galã de cinema (Clark Gable amarrado e comido por formigas é de uma ironia deliciosa) e se autoproclama livre. Tudo isso enquanto, no mundo real, ela está preocupada em não "ferir" o marido. Isso, meus caros, é o subtexto em sua forma mais potente. É a "verdade" da personagem, que vive trancada no porão de sua consciência. Como Aplicar o Truque da "Narradora Contraditória" Querem dar essa profundidade aos seus personagens? Então aqui vai o desafio da semana: Crie a Contradição: Pense em um personagem que está preso a uma crença limitante sobre si mesmo ("Eu sou feliz assim", "Eu não mereço mais", "Eu preciso dessa pessoa para viver"). Mostre as Fissuras: Não diga que ele está mentindo para si mesmo. Mostre . Descreva seus rituais diários com um toque de melancolia. Dê a ele tiques nervosos, sonhos estranhos, um hobby secreto que contradiz sua persona pública. Use a Fantasia: Deixe a mente do seu personagem escapar. Assim como a nossa narradora foge para uma África imaginária, para onde o seu personagem iria? O que ele faria se ninguém estivesse olhando e se as regras sociais não se aplicassem? O que o personagem não diz é, muitas vezes, mais importante do que ele diz. É nesse silêncio ruidoso que a boa literatura acontece. Agora vão lá e escrevam umas belas e complexas mentiras. Até a próxima, Ana Amélia.
- O Fantasma da Página em Branco: Um Guia para Escrever, Revisar e (Finalmente) Publicar
O Bloqueio criativo e revisão de texto E aí, pessoal. Ana Amélia na área. Hoje, vamos falar sobre o inimigo número um de todo escritor, aquela assombração que transforma teclados em instrumentos de tortura e canetas em pesos de papel caríssimos: o bloqueio criativo . E, de quebra, vamos conversar sobre o primo-irmão dele: a paranoia da revisão. Se você já se sentiu encarando um cursor piscante como se ele fosse o olho do abismo, este post é para você. Puxe uma cadeira, sirva-se de um café (de preferência quente) e vamos exorcizar esses demônios juntos. Encarando o Abismo: Os Tipos Clássicos de Bloqueio Criativo Antes de lutar contra o monstro, é bom saber o nome dele. O bloqueio raramente é um "não tenho ideias". Isso é mito. O bloqueio é, quase sempre, medo disfarçado de preguiça. Vejamos os disfarces mais comuns, especialmente no início de um projeto: A Paralisia do Perfeccionista: Você tem a ideia, os personagens, a trama. Mas cada frase que você escreve parece lixo. Você a deleta. Escreve de novo. Deleta. Você quer que a primeira versão já saia com a dignidade de um Hemingway. Spoiler: não vai sair. O Pânico do Planejador: Você tem 500 páginas de notas, árvores genealógicas, mapas do seu mundo fantástico e a biografia do primo de terceiro grau do seu protagonista. A história é tão gigantesca na sua cabeça que você não sabe por onde começar. Resultado? Não começa. A Síndrome do "E Se?": "E se ninguém gostar?", "E se a ideia for estúpida?", "E se eu não conseguir terminar?". Essa é a voz da autocrítica sabotadora, que resolveu fazer uma festa na sua cabeça e não te convidou. Chaves Mágicas para Destrancar a Mente (e a Página) Ok, chega de sofrimento. A boa notícia é que existem ferramentas para arrombar essa porta. Apresento aqui um arsenal testado e aprovado. 1. Escrita Livre (O Aquecimento) A regra é simples: não há regras . Marque 10 ou 15 minutos no cronômetro e simplesmente escreva. Não pare, não julgue, não volte para corrigir um erro de digitação. Se não souber o que escrever, escreva "eu não sei o que escrever" até que outra coisa apareça. O objetivo aqui não é produzir literatura, mas sim calar o editor interno e fazer seus dedos se moverem. É aquecer o motor. 2. Fluxo de Consciência (A Versão Gourmet) Pense nisso como a versão literária da escrita livre. É a técnica que gente do calibre de Virginia Woolf usou para mergulhar na mente de seus personagens. Em vez de apenas escrever qualquer coisa, tente entrar na cabeça do seu protagonista e despejar na página tudo o que ele está pensando, sentindo, observando, sem filtro, sem ordem cronológica, sem lógica aparente. É uma bagunça? Sim. É uma mina de ouro para encontrar a voz do seu personagem e desvendar motivações ocultas? Com toda a certeza. 3. A Técnica Pomodoro (Para os Obcecados por Controle) Se a ideia de "escrever sem parar" te dá ansiedade, experimente o contrário. A Técnica Pomodoro é sua amiga. Funciona assim: ajuste um cronômetro para 25 minutos e se comprometa a focar exclusivamente na escrita durante esse tempo. Sem celular, sem e-mail, sem desculpas. Quando o tempo acabar, faça uma pausa de 5 minutos. Repita. A tarefa monumental de "escrever um livro" se transforma em pequenas e gerenciáveis fatias de 25 minutos. É psicologia barata, mas funciona. 4. O Jogo do "E se...?" (Para Desatar Nós na Trama) Às vezes, o bloqueio não é sobre começar a escrever, mas sobre continuar. Você se enfiou num beco sem saída na sua história. É hora de brincar de "E se...?". Pegue um caderno e comece a listar possibilidades, por mais absurdas que pareçam. E se o vilão, na verdade, for o mocinho? E se o objeto mágico que todos procuram for inútil? E se sua protagonista desistir de tudo no meio do caminho? Isso força seu cérebro a sair dos trilhos e encontrar novas e inesperadas avenidas para a sua narrativa. 5. Troque de Ferramentas (A Síndrome do Objeto Brilhante a seu Favor) Você sempre escreve no mesmo computador, no mesmo software, na mesma cadeira? Mude. Acredite ou não, uma simples mudança de contexto pode dar um choque no cérebro. Tente escrever à mão num caderno bonito. Use um software de escrita diferente. Vá para um café, uma biblioteca, o parque. Às vezes, tudo que sua mente precisa é de uma paisagem nova para pensar coisas novas. 6. O Método do Impacto Físico (Para os Realmente Comprometidos) Sabe aquele clichê poeirento de que a grande arte nasce da dor? Pois bem. Há quem leve isso ao pé da letra. Para os casos terminais de bloqueio, quando as técnicas anteriores parecerem sutis demais, existe uma abordagem mais... direta. A técnica é simples: posicione-se diante de um espelho, encare o reflexo do seu fracasso iminente e estapeie-se vigorosamente na face. O choque físico tem o mérito de silenciar o crítico interno, substituindo a angústia existencial por uma dor bem mais simples e imediata. Muitos escritores relatam uma clareza de pensamento súbita pós-impacto. Use com moderação. Ou não. 😂😂😂😉 (Pode parecer brincadeira, mas usei está técnica diversas vezes como redatora publicitária) A caixa de ferramentas está aí. Escolha sua arma, vença a inércia e escreva a bendita da primeira versão. Porque depois da criação... vem a autópsia. A Arte da Autópsia: Quando (e Como) Revisar Seu Manuscrito Você venceu o bloqueio. Escreveu. Vomitou o primeiro rascunho. Parabéns! Agora começa o segundo ato do drama: a revisão. E aqui mora um perigo tão grande quanto a página em branco. Primeiro, o Autor: A Distância Necessária A regra de ouro: nunca edite enquanto escreve o primeiro rascunho . É como tentar esculpir e extrair o mármore da montanha ao mesmo tempo. Primeiro, você extrai o bloco bruto. Depois, e só depois , você pega o cinzel. Terminou o rascunho? Feche o arquivo. Vá passear. Leia outros livros. Esqueça que você escreveu aquilo por algumas semanas, no mínimo. Esse distanciamento é crucial. Ao voltar, você terá um olhar mais fresco para a sua própria primeira revisão, que deve focar em questões macro: A estrutura funciona? O ritmo está bom? Os personagens são consistentes? Existem buracos na trama? Só depois de resolver a arquitetura do prédio é que você vai se preocupar com a cor das paredes e a posição dos móveis (ou seja, a beleza das frases e a escolha das palavras). Depois, o Profissional: A Hora do Olhar de Fora Haverá um momento em que você terá lido seu próprio texto 27 vezes. Você já saberá as frases de cor. E, nesse ponto, você está cego. Você não vê mais os erros de digitação, as frases confusas ou aquela metáfora que só faz sentido para você. É aqui que o escritor amador se separa do profissional. O profissional sabe a hora de pedir ajuda. Um olhar externo e treinado não é um atestado da sua incompetência; é a ferramenta mais poderosa para levar seu texto a outro patamar. E quando falo em ajuda, não falo apenas de um revisor que caça vírgulas. Falo de um processo que eleva a sua escrita. É por isso que, para os meus leitores que estão nessa fase crucial, eu costumo indicar caminhos que promovam um crescimento real. Um serviço como o da Revisão Dialogal (sim, o nome já diz tudo: Revisao Dialogal ), por exemplo, não trata seu texto como um objeto a ser consertado, mas como uma voz a ser polida, em constante conversa com o autor. É a diferença entre um mecânico e um copiloto. E para quem sente que o buraco é mais embaixo — que precisa não apenas de uma revisão final, mas de um guia durante a jornada, alguém para discutir a trama, desvelar o potencial dos personagens e servir como um mentor estratégico — a busca é por uma consultoria literária, como a da Revisao Dialogal . Esse tipo de parceria, com encontros e análises do material em processo, é o que transforma um diamante bruto numa joia lapidada, permitindo que o escritor não apenas termine um livro, mas se torne um escritor melhor. No fim das contas, escrever é um ato solitário, mas publicar é um ato de colaboração. Vença o fantasma da página em branco, tenha a coragem de colocar o ponto final no primeiro rascunho e a sabedoria de saber quando passar o bastão. Até a próxima, e boa escrita! Ana Amélia









