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"Segunda Vez" de Cortázar: O Manual do Terror Burocrático.

  • Foto do escritor: Ana Amélia
    Ana Amélia
  • 31 de jul.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 3 de set.

Análise do conto "Segunda Vez" de Cortázar, mostrando uma máquina de escrever cercada por elementos que simbolizam a burocracia, a ansiedade e o desaparecimento.

Desvendando Cortázar: A Tensão e o Silêncio em "Segunda Vez".


E aí, sobreviventes da página em branco? Ana Amélia na área.

Hoje, vamos calçar as luvas e operar um dos mestres do estranhamento: Julio Cortázar. A peça na nossa mesa de autópsia é o conto "Segunda Vez". Se você nunca leu, prepare-se para um desconforto elegante. Se já leu, sabe que a sensação de que "algo está errado" nunca nos abandona.

Cortázar era um mágico do subentendido, um arquiteto de labirintos onde a saída é sempre uma nova pergunta. E neste conto, ele nos convida para um lugar aparentemente inofensivo: a sala de espera de uma repartição pública. Um lugar de formulários, chamadas e uma espera entediante. Ou será que não?


O Palco do Absurdo: A Burocracia como Vilã


A genialidade de Cortázar começa na escolha do cenário. Não há monstros, fantasmas ou assassinos com facas. O terror em "Segunda Vez" nasce do procedimento, da ordem inexplicável, do funcionário que chama nomes de uma lista. A história é narrada por uma voz que parece tão perdida quanto nós, tentando entender as regras de um jogo que ninguém se deu ao trabalho de explicar.

— Bom, agora somos nós — disse o rapaz. — O senhor não se incomoda se eu fumar um cigarro? Não aguento mais, mas a senhora parecia tão indisposta. [...] Com maiúsculas, bem claro. Eram as besteiras de sempre, nome e sobrenome, idade, sexo, endereço. Entre duas palavras, María Elena sentiu que alguma coisa a incomodava, alguma coisa que não estava muito clara. Não na planilha, onde era fácil ir preenchendo os espaços; alguma coisa de fora, alguma coisa que faltava ou que não estava em seu lugar.

Percebem a sutileza? A personagem, María Elena, sente que "algo não está em seu lugar". Não é um medo palpável, é uma dissonância. É a sensação de que a lógica do mundo foi suspensa naquele corredor. As pessoas são chamadas, entram por uma porta e... não voltam. A tensão não está no que acontece, mas no que deixa de acontecer: o retorno.

Essa técnica de construir o pavor a partir da ausência é uma aula magna de tensão narrativa. Cortázar não precisa descrever a tortura ou a violência. Ele apenas nos mostra a porta se fechando e o silêncio que fica depois. É o nosso cérebro que, treinado pela brutalidade do século XX, preenche as lacunas. Escrito durante a ditadura militar argentina, o conto é uma alegoria perfeita dos desaparecimentos forçados. A "segunda vez" do título não é uma segunda chance, mas a repetição de um ciclo de apagamento.


A Engenharia Reversa do Apagamento


Para entendermos como Cortázar é eficaz, vamos contrastá-lo com outra distopia onde o Estado se torna o administrador da existência. Vamos deixar Kafka descansando um pouco e invocar o pai da vigilância, George Orwell, e sua obra-prima, 1984.

Em 1984, o apagamento de uma pessoa é um procedimento administrativo, uma correção nos registros. O termo para isso é "vaporização". A pessoa se torna uma "impessoa". Orwell nos mostra o resultado final desse processo através da percepção de Winston.

Syme fora vaporizado. Tornara-se uma impessoa. Fora abolido. Era um espaço em branco. Nunca existira. [...] Era curioso como se podia seguir o processo em minúcia. Riscar o nome das listas, queimar os registros, desmentir qualquer ação que a pessoa tivesse praticado, apagar qualquer lembrança. Fazer como se tal pessoa nunca tivesse existido.

Orwell nos explica o mecanismo. Ele nos dá o nome ("vaporização"), detalha o processo burocrático de apagar alguém da história. É terrível, frio e explícito. Cortázar, por outro lado, nos joga dentro da sala de espera desse mesmo processo, mas sem nos dar o manual de instruções. Ele não usa a palavra "desaparecimento", ele nos faz sentir a angústia da família que espera do lado de fora da porta.

Enquanto Orwell nos entrega um tratado sobre o totalitarismo, Cortázar nos entrega a experiência sensorial dele. Ambas as abordagens são geniais e buscam o mesmo efeito: demonstrar a fragilidade da existência perante um poder invisível e absoluto. A escolha de qual caminho seguir define o tipo de impacto que um autor quer causar.

Toda essa construção, essa escolha precisa de palavras e omissões, não é acaso. É engenharia narrativa. É a prova de que a estrutura e o estilo não são meros enfeites, mas o motor que define se uma história será esquecível ou se ela vai te assombrar por dias. É exatamente esse eixo autor-texto-leitor que a nossa filosofia na Revisão Dialogal busca dissecar, entendendo que cada vírgula pode ser um passo em direção ao sublime ou ao abismo.

🔪 Dica de Leitura da Ana

"O Deserto dos Tártaros", de Dino Buzzati. Se você se sentiu paralisado pela espera em "Segunda Vez", precisa conhecer a história do tenente Drogo. Ele é enviado a uma fortaleza remota para aguardar uma invasão inimiga que talvez nunca chegue. É uma obra-prima sobre a passagem do tempo, a esperança e a forma como a espera pode consumir uma vida inteira. Um ângulo diferente, mas igualmente poderoso, sobre a paralisia existencial.


☕ Um café e uma primeira conversa


Seu manuscrito parece um corredor onde os personagens entram e a trama se perde? Seus diálogos são como formulários, preenchendo espaços sem revelar nada? Talvez seu texto precise de mais do que uma simples correção.

A sensação de "algo fora do lugar" que Cortázar domina pode ser um recurso poderoso, ou pode ser um sinal de que sua narrativa não está funcionando. A diferença é a intenção. Nosso trabalho na Revisão Dialogal é encontrar essa diferença.

Clique aqui nos envie um trecho do seu texto. Faremos uma amostra gratuita da nossa revisão gramatical e ortográfica. Será o primeiro passo, a "primeira vez". A partir daí, podemos conversar sobre como garantir que, na sua história, cada porta que se abre leve o leitor exatamente para onde você planejou.

Não deixe sua história desaparecer num corredor burocrático. Dê a ela a clareza e o impacto que ela merece. Um bom revisor não apenas limpa o texto; ele verifica se todas as portas levam a algum lugar. Mesmo que seja ao nada.

Ana Amélia



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