A Sintaxe do Sertão: Como Guimarães Rosa Esculpiu Palavras e Quebrou a Gramática
- Ana Amélia

- 28 de ago.
- 6 min de leitura
E aí, criadores de universos, Ana Amélia na área!
Bora mexer com um gigante que muitos de vocês têm na prateleira, mas talvez, no fundo, tenham um medo danado de abrir: João Guimarães Rosa. Se você acha que a gramática é uma espécie de manual de instruções rígido, daqueles que vêm com a geladeira e você nem ousa ler, prepare-se para ter suas certezas estraçalhadas. Rosa não apenas desrespeitou as regras; ele as usou como blocos de montar para erguer um universo paralelo, um sertão mágico onde as palavras dançam.
Muitos escritores se sentem presos, com medo de "inventar moda", de torcer a sintaxe, de criar uma palavra nova com receio de soarem... errados. Pois bem, hoje vou te mostrar como o mestre do sertão não apenas quebrou as regras, ele usou os cacos para construir algo novo. Vamos pegar nosso bisturi e dissecar alguns de seus "truques" para entender como ele fez isso e, de quebra, como você pode pegar um pingo dessa ousadia para dar vida aos seus próprios textos.
O Truque Mestre: A Voz Dupla Que Te Guia e Te Confunde
A primeira coisa que salta aos olhos — e aos ouvidos — na prosa de Rosa é que não há uma, mas duas vozes disputando a sua atenção no mesmo parágrafo. É uma jogada de gênio que cria uma textura narrativa única.
De um lado, temos o "Contador de Causo", a voz da oralidade, do sertão. Ela é cheia de tiques, repetições, e carrega uma sabedoria que vem da terra e das conversas de beira de rio. É essa voz que nos senta numa roda de fogueira para ouvir uma história. É dela que vêm frases como “Inveja é erro de galho, jogar jogo sem baralho” ou o delicioso uso do "conformemente" como uma bengala para apoiar a narrativa. Ela é a poesia crua da vida.
Do outro lado, quase como uma nota de rodapé metida no meio da frase, temos o "Meta-Narrador Erudito". Ele aparece, muitas vezes, entre parênteses, com uma linguagem culta, analítica, quase acadêmica. Ele é a consciência intelectual do texto, quem traduz a sabedoria do povo para a linguagem da teoria.
Vamos ver essa dupla em ação num trecho de "A Estória do Homem do Pinguelo":
Súbito acúmulo de adágios — recurso comum ao homem do campo, quando tenta passar-se da rasa realidade, para principiar em fórmulas suas abstrações. Quanto à frase in fine, quererá dizer que: o que merece especulada atenção do observador, da vida de cada um, não é o seguimento encadeado de seu fio e fluxo, em que apenas muito de raro se entremostra algum aparente nexo lógico ou qualquer desperfeita coerência; mas sim as bruscas alterações ou mutações — estas, pelo menos, ao que têm de parecer, amarradinhas sempre ao invisível, ao mistério.

Percebeu o jogo? O contador solta a pérola de sabedoria popular ("a gente toma a proveitosa lição não é do corrido, mas do salteado"), e o erudito entra em cena para "explicar" o conceito com pompa e circunstância. Essa esquizofrenia narrativa faz duas coisas incríveis: valida a voz popular com o selo da erudição e, ao mesmo tempo, dá calor e vida à análise teórica. É uma aula e um causo, tudo junto.
A Usina de Palavras: Neologismos que São Pura Poesia
A grande marca de Rosa é, obviamente, sua capacidade de criar palavras. Ele não descreve um sentimento; ele inventa a palavra que é aquele sentimento. Ele não está sendo preguiçoso; está nos mostrando que a língua é um organismo vivo, uma argila a ser moldada.
O texto está recheado de exemplos que deveriam ser emoldurados. Ele não lista os cantos dos pássaros; ele nos dá uma orquestra de neologismos que são a própria essência do som.
(O epigorjeio, mil, do páss’o-preto, que marca a alvorada. O em fundo e eco sabiá, contábil. O contrapio segredoso do azulão. O esquerzo mero, ininfeliz, dos gaturamos. [...] O tintimportintinhar sem teor da garrichinha estricta. O pintassilgo, flebílimo na alegria. O sanhaço: desmancha-pesares. O eclodir-melodir do coleiro, artefacto. O cochicho quase — imitante, irônico — da alma-de-gato, solíloqua. [...] O doidivescer honesto do patativo...)
"Flebílimo na alegria." "Doidivescer honesto." "Eclodir-melodir." Isso não é só escrita, é música. Rosa nos ensina que, às vezes, a palavra que você procura não existe. E tudo bem. Se você a criar com intenção, com poesia e dentro da lógica do seu universo narrativo, o leitor não vai estranhar. Ele vai se maravilhar.
Em um de seus prefácios na “Edição de Nova York”, Henry James fala sobre a "arte de deixar de fora", mas Rosa nos mostra o oposto: a "arte de colocar dentro", de infundir a linguagem com vida nova. Enquanto James se preocupa em não sobrecarregar o leitor, Rosa o convida para um mergulho total. Onde James trabalha com a precisão do relojoeiro, Rosa trabalha com a força da natureza.
A Sintaxe do Sertão: Quebrando a Ordem para Encontrar a Verdade
Por fim, a sintaxe. Rosa escreve como se fala. As frases dele não seguem a ordem direta e limpinha da gramática normativa. Elas serpenteiam, dão voltas, pausam, respiram.
Saí de lá, andei morando em distantes comércios, guardei o de Deus, gastei o do diabo... Mas, o que no fim de cada mês me falta, a minha Nossa Senhora intéira.

A beleza dessa construção está em sua musicalidade e em sua verdade. É assim que as histórias são contadas oralmente, com hesitações e desvios. Ele nos prova que a clareza nem sempre é o objetivo principal. Às vezes, o objetivo é a textura, o ritmo, a sensação. É uma escolha de estilo consciente.
Então, da próxima vez que você estiver escrevendo um diálogo ou a narração de um personagem com uma voz muito particular, não tenha medo de deixar a sintaxe dele "derrapar". É nessa derrapagem que, muitas vezes, mora a alma do personagem.
Guimarães Rosa é uma aula magna sobre liberdade. Ele nos dá a permissão para sermos donos da língua, e não seus escravos. Ele nos mostra que a ousadia e a invenção não são sinais de falta de domínio, mas de domínio total. Mas, cá entre nós, o que torna a liberdade de Rosa tão potente é a base sólida que ele possuía. Ele sabia exatamente o que estava quebrando, e por quê.
E é aí que entra a nossa conversa. Sua voz é única, sua história é sua. A gente te ajuda a garantir que essa voz chegue ao leitor com toda a sua potência, sem perdas no caminho. A gente não está aqui para podar sua criatividade, mas para regá-la, para que ela cresça e floresça sem amarras. Nosso método de revisão é uma espécie de bússola para a sua ousadia: te mostramos o mapa e as estrelas, mas é você quem escolhe o caminho. A gente acredita que a melhor revisão é uma conversa sobre o texto, uma parceria para lapidar, não para cortar. É uma abordagem que entende que a sua história é um organismo vivo, e não uma fórmula a ser preenchida.
☕ Um café e uma primeira conversa
Seu texto é um universo em si. Ele tem suas próprias regras, sua própria voz. Mas, às vezes, a gente se perde nas nossas próprias criações. Um olhar externo, uma conversa sobre o potencial da sua obra, pode ser a bússola que falta para que sua escrita navegue com segurança e chegue aonde precisa. A gente não vai te transformar em Guimarães Rosa, mas podemos te ajudar a ser a melhor versão de você mesmo, como escritor. Nossa revisão é um convite para essa parceria. Para um café e uma primeira conversa sobre o que faz seu texto ser tão único.
Deixe a ousadia "doidivescer" e a sua voz fluir livremente. A gente te ajuda a pavimentar o caminho para o leitor.
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