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A Estória do Homem do Pinguelo: Conto de Guimarães Rosa

  • Foto do escritor: Letra & Ato Editorial
    Letra & Ato Editorial
  • 5 de jul.
  • 38 min de leitura

Atualizado: 28 de ago.


Retrato de um sertanejo do Vale do Jequitinhonha em meio à paisagem ressequida pela seca, representando o cenário do conto de Guimarães Rosa.

Estas estórias / João Guimarães Rosa. – 6. ed. – Rio de Janeiro : Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.


A Estória do Homem do Pinguelo


Nada em rigor tem começo e coisa alguma tem fim, já que tudo se passa em ponto numa bola; e o espaço é o avesso de um silêncio onde o mundo dá suas voltas. Esfera com mares, em azul, que confecham terras de outras cores. Montanhas se figuram por fieirinhas de riscos. Os rios representam-se a traços, sinuosos mais ou menos. Aí e cada cidade é um centro, pingo ou não em pequenino círculo. Mas, o povoado...

 

— Arraial. O arraial que, já nos dantes tempos, se datava do Sr. Sagrado Coração de Jesus e de um Seo Coronel Regismundo dos Reis Fonsêca. Afianço que aquém ou além, por estes fundos nossos. As casas meio em beira do rio, sobre o em onde a barra do ribeirão; e é ver que inda tem uma lagoa, no que era para comum ser somente o Largo da Igreja. Lugarzinho amansado de quieto, conformemente, pelo mor moroso. Lá, o existir é muito escasso. Em tanto que, com o pessoal todo conhecidos uns dos outros, as coisas nem acontecem com regra de separação, mas quase só como se inventando de ser — no crescer do plantado e no virar do ar. Assisti ali, dos três aos trinta, naquele princípio-demundo. Lugarejo...

 

Valha dizer-se também do redor — os cerrados de tabuleiros, uns campos, com amagrados capins e árvores de maus ossos, mas no entremontar de serras, onde se acham e se perdem as estradas. Andando ao acaso, às costas delas, um se pasma e interrompe, ao às-vezes abrir-se de vista alegre, longe, clara, nas paisagens inopinadas, páginas e páginas. Aqui e ora aí, por abaixo, orlam-se caapões e pega-se chão bom, em vale oasioso: belvale, valverde, valparaíso. Adiante, quando as léguas cessam, surge em saco-de-morro uma casa-de-fazenda, toda dentro dos currais, entre-e-entre mangueiras — e o laranjal, com um coeso fresco de pequena floresta, indo até junto do paredão, em que o mato mexe-se sobre o calcáreo azul das pedreiras. O ar é ágil, a gente habita-o levemente. Casinhas brancas, cafuas morenas. E há o riacho ávido, corguinhos vários, grégio o gado pastando. Após o escurecer, vão-se assim vagalumes ou o assombrável luar ou o céu se impõe de estrelas. Às duas margens da noite, totais grilos e a simultaneidade dos sapos, depois e antes do em-si-estremecer das cigarras. Tudo, pelo dito, quer que ali deva reger não o devido, mas o dado...

 

— É. O lugar não é de todos o pior. Com sua terra-decultura, afora o que se reparte para a engorda de rêses, e cria e recria. Por ano, em maio, junho, lavora um forte movimento, que arremeda o de cidade. Só carros-de-bois cantando, trazendo o milho das roças, o povo feito na colheita... E algum negócio regular. Teve quem se diz que enriqueceu. Eu é que estou no que era, fiquei sendo. Dono de chácara, dono de sítio, de diversos — construção, carroças — perdi tudo, o mais reperdi, parei no à-toa. Vivendo como não posso. Isso não tira de minhas alegrias. Hoje, já me revejo quase meio remediado, enquanto que é a outra vez. Saí de lá, andei morando em distantes comércios, guardei o de Deus, gastei o do diabo... Mas, o que no fim de cada mês me falta, a minha Nossa Senhora intéira. Com a ajuda superior, eu vivo é do que é o do bico dos pássaros...

 

Cujo nome é legião. Sábio seria poder seguir-se, de cor, o que eles tradizem, levíssimos na matéria. E todos inventam vogais novas. Porque os passarinhos, ali, ainda piam em tupi.

 

(O epigorjeio, mil, do páss’o-preto, que marca a alvorada. O em fundo e eco sabiá, contábil. O contrapio segredoso do azulão. O esquerzo mero, ininfeliz, dos gaturamos. Os canarinhos repetitivos. O tine-trêmito silencional da araponga metalúrgica. Os eólios nhambus que de tardinha madrugam. O simplezinho sim do tico-tico. O sofredor também corrupião — sua longa, mélroa intenção pípil. O tintimportintinhar sem teor da garrichinha estricta. O pintassilgo, flebílimo na alegria. O sanhaço: desmancha-pesares. O eclodir-melodir do coleiro, artefacto. O cochicho quase — imitante, irônico — da alma-de-gato, solíloqua. Os duos joãos-de-barro, de doméstico entusiasmo. O, que enfraquece o coração, fagote e picirico dos pombos. O operário pica-pau, duro estridente ou o mais mudo. O doidivescer honesto do patativo (seus pulmõezinhos, sua traqueiazinha muito forte). O trêmulo pispito, a interrogar, sem mais, das tortas andorinhas, fugas. O canto do galo, que é um meteoro. O horrir da coruja clarividente?)

 

Dó é, porém, que tão desencontradas, contramente, suas revelações se confundam. E que, no impropício, rude ou frouxo dia-a-dia, ninguém tenha inda tempo capaz de entendê-los.

 

— Credo que não. É mal ver que, às ora vezes, a gente mal vive, por tudo. Mas, também, cá não me queixo, nem da roda nem do eixo. Jamais, nuncas, eu invejei ninguém: porque inveja é erro de galho, jogar jogo sem baralho. A sina ou os acasos, de outros, meus não são — e nem por sobra nem copiado, porventuras, parentescos. Pouquinha dúvida. Invejar é querer o peso de bagagens alheias, vazio. Pelo que tolero o justo mal ou bem de todos. O que há, é que eu uso de jogar de fora. Eu aprendi assim. Eu vivi mais pouco, pelo aprender mais antes coisas. Quem não é, não pode ser. Assim como: não haverá dois cipós que não acabem se emendando. Se para escutar não lhe cansa — sempre me alembro de um forte caso, conteúdo, que nem dos de livro, conformemente. É estória achada. E o senhor depois vai não contrariar comigo que, do que se vive e que se vê, a gente toma a proveitosa lição não é do corrido, mas do salteado.

 

Súbito acúmulo de adágios — recurso comum ao homem do campo, quando tenta passar-se da rasa realidade, para principiar em fórmulas suas abstrações. Quanto à frase in fine, quererá dizer que: o que merece especulada atenção do observador, da vida de cada um, não é o seguimento encadeado de seu fio e fluxo, em que apenas muito de raro se entremostra algum aparente nexo lógico ou qualquer desperfeita coerência; mas sim as bruscas alterações ou mutações — estas, pelo menos, ao que têm de parecer, amarradinhas sempre ao invisível, ao mistério.

 

— A verdade letrada! Aí é que está o polvilho... Antes, pois. Seo Cesarino estava sendo dono de uma venda, mesmo na saída do arraial. Seo Cesarino era moço apessoado, de bom siso, magro, alto, forçoso. Vermelho, dos de mais nariz, vestido com um paletó de alpaca, que nem seu defunto Pai, parecia até que pertencido do Pai, por tanto quanto. O Pai era homem situado, seguro, companheiro de caçadas de Seo Coronel Regismundo e compadre de Seô Caetano Mascarenhas, da Ponte-Nova. Com ele, não se brincava de aliás. Mas já tinha morrido.

 

Senão se só em dois pontos, denuncia-se o narrador, quanto a secretas opiniões ou involuntárias razões, que estariam a conduzi-lo no contar; o que pode propor algo à luz o sentido oculto da estória. Primeiro, diz “na saída” do arraial, quando também, e melhor, poderia ser “na entrada”. Depois, reafirma, com instantes ênfases, a personalidade do Pai, como se de incerto modo este se fizesse notado ainda, mas preponderante, por alguma outra espécie de presença. (Interpelado, sobre item e

outro, ele nada tem para explicar.)

 


Fachada da venda de Seo Cesarino durante a seca, um dos cenários principais do conto 'A estória do Homem do Pinguelo'.

— Seo Cesarino herdou a venda, não tinha mãe nem irmãos. Estava sempre calçado de botinas, o chapéu em cheio, com colete e paletó, mesmo dentro de casa. Ele usava ficar passeando, perpassante, por frente da venda, e bom é dizer que nunca se viu outro para andar com vontade de passo tão largo e estudado ligeiro, feito ele, me figuro e alembro. Seo Cesarino ria disparado de fácil, a cara comprida — o que queixo. Somenos que, às vezes, puxava de bravo, mas a raiva, com ele, se ia se indo, não tinha para onde espirrar. Segurava a gente pelo braço, para andar o lá-pra-cá, juntos conformemente. Achava o jeito de contar graças, motes de pândega, a cabeça cheia de coisas que vazias. Seo Cesarino apreciava a minha companhia, muito.

 

Nenhum presunçoso gabar-se, nesta derradeira, quase impessoal observação.

 

— Alguns achavam que ele era mais de vir do que de se chamar. Por via de acontecidos desses como este: de quando um pé-d’água derribou pano de muro do cemitério. O padre pronunciou que se havia de providenciar, passou introitos em sermão, mandando ao povo que o dinheiro encaixassem. Só que ninguém estava tendo o vagar nem pressa nenhuma de dar, aí a coisa parava para mais logo. Vai, do que, Seo Cesarino, no de um dia, no repente, saiu casa por casa, rogando intimado, recolheu quantia, formou os pedreiros, pegou a bênção do padre, e ainda foi feitorar enfim a tarefada. Homem ardente. — “Não ia consentir vossas vacas vindo comer capim lá de dentro, e quanto cabrito sujos deslimpando por riba de cova de minha mãe, meu Pai!” — me disse, me redisse.

 

Convém, quando possível, reparar-se que o contador alterna, afetivamente, pelo menos dois tons, positivos. Aqui, em exemplo, o acento surdo recaindo sobre o “Pai”, daí por isto gravado maior.

 

— Em outra ocasião, um moço de fora, que ganhava a vida medindo terras, requereu ao seo Cesarino favor de embaixada, de ir para ele pedir a filha de um sitiante, seo Agostinhinho, o manco. Seo Cesarino, é de ver que depressa foi que foi, lá almoçou, caçoou, e declarou o pedido, sério somente, costumeiro. Seo Agostinhinho meditou que primeiro carecia de uns dias, para bem poder resolver, mas com detença. Pouquinha dúvida. Seo Cesarino concordou que sim, porém que ficava feioso, para ele, não voltar já com a resposta satisdada. E que, por via disso, ia ter de esperar os três dias mesmo ali, no sítio, se caso seo Agostinhinho estivesse pelo dito, pelo hóspede. Pouquinha dúvida. E só aluiu de lá com o prazme do pai, noivado ajustado, por alegria de todos, conformemente.

 

No narrado, não há inexatidão. Aquele agrimensor deu-se bem com a sua consorte. Seo Agostinhinho, mal historiado homem, não seria menos pífio nem mais fero que os demais habitantes.

 

— Aqui, tomo água benta. Pelo que também, afora o que retro falei, seo Cesarino sendo de todos estimado, e muito. Porque mal cobrava o que deviam a ele, e favorecia dinheiro, em préstimo, a quem pedisse por precisar. Mesmo pensava junto, com qualquer um, para ajudar a resolver os casos desse outro, assuntos. Homem do pé quente. Discorria que o arraial carecesse de melhorar prumo, porvir adiante: se abastar de tamanho e progressos, capaz de ainda ser o principal, de todos por perto, para principiar. Bom é dizer que seo Cesarino não errava ocasião de festas, nem o de divertir que se desse de ter e haver, no derredor. Caçava. Possuía sempre um ou mais animais, regulares, de sela. E se prezava de botar gravatas, mesmo não sendo em dia-de-domingo. É mal ver que gastava meio para lá do convinhável — mas não que fosse rapaz estragado, demais não se pense. O que era: que a venda dele estava era dando para trás, não fazia muito negócio. Quem estavam se arredondeando eram as outras vendas. A de seo

Genuíno. As dos turcos.

 

Seo Genuíno, cunhado de Seo Coronel Regismundo, se via assim uma espécie de gentil-homem no sertão, já se esfarelando de rico, e nada de atraso poderia pegar-lhe, dado que como as águas vão é de rio a navio. A mais, ali, apenas bitáculas sem menção, a não ser o “São Jorge Barateiro” e o “Oriente Primavera”. E é que Abdallah Ibrahim e Jorge Felício Mansur, os sírios, ainda haviam desembarcado no país vestidos de rouponas e cobertos com turbantes, o povo dizendo deles que comiam crianças. Carregaram baús de mascatear, tocaram matracas, mas prosperaram, arabizavam, só em inteligente progredir. Salim Badi, de costas das mãos e antebraços tatuados de azuis, vencia: derramava sobre si, dia sim, dia não, um frasco barato de perfume. Mas, tendo por detrás, e no sangue, o antepassado fenício, ninguém podia com ele.

 

— Vida sem vigiada. O fiado mal cobrado, e não pago, é que avoa com o negócio. E o miúdo. Ora, que passava alguém, seo Cesarino conversava, ouvia e contava os casos, propunha arrojo no glosar os meios de grandeza, e em o mais. O sujeito apreciava, dizia o riso e o gosto, e depois ia mais adiante, comprar de seos Salim ou Ibrahim, que nunca sacavam tempo sem forro de dinheiro. Às lástimas, que a venda de seo Cesarino não chegava mais nem aos pés do que tinha sido, conformemente, quando o Pai dele inteiro vivia. O fundode-negócio de encalhe, quase tudo alcaide. Maus maços...

 

Sim e não. A venda não era propriamente pequena. Dominava a ponta do arraial, no baixo da rua, no para quem vem do rio e vai ao matadouro. Casa boa, de quatro portas, quintal vasto. Seo Cesarino tinha nascido ali, tão bem quanto o Pai e talvez o avô de seo Cesarino. — Teúdo e transato tropicavam, e é mal ver que nem seo Cesarino conseguia jeito de saber melhorar o sortimento, que restava encravado ali, as coisas morrinhando. Para o prato de viver de um rapaz solteiro, quase que ainda dava, se junto com o pouquinho mais, que tivesse herdado. Mas não podia ficar facilitando nas sobrecontas, nem emprestando dinheiro a cachorros e gatos, naquele já-chega. Isto é o que foi. Pouquinha dúvida. Por fim, ele se afundou pior, contra embaraços e outros, na cor do caldo. Bom é dizer que, naquele ano, tinham sucedido as invernadas muito brabas. O mundo virava chuva, chuva. Com enchente. Aí quando o rio, o ribeirão e a lagoa subiram, a água tapou uma sua parte do arraial, conformemente. Mas é ver que a única venda que sofreu, de má verdade, foi mesmo a de seo Cesarino.

 

Resuma-se: que foi hora — em paupéries e intempéries. A cheia ficou notável. As chuvas ditas de calcarem no mundo mais marcas, Deus estando se apressando. A casa da venda de seo Cesarino tomou água por fora e por dentro, medidos na parede nove palmos.

 

— Aí, se esperdiçou fatal a quanta mercadoria. Botouse para secar, mas tudo em barro grosso, empesgado, fartas coisas se apodrecendo. Estive lá, ajudando ao seo Cesarino. Em certa má-sorte, ele se arreliou, disse, nos sem-fundos da razão: — “Estou para saber se algum dia se deu uma desgraçação igual a esta, nos outros saudosos tempos do meu Pai!...” Daí mal em diante, foi que não vendia mesmo nada nem quase. O caipora, até na pedra atola. Tanto mais o quanto mais. Os cometas já não estavam querendo vir a ele com encomenda de se oferecer. Ah, o rapaz, em linhas frias. E tudo ia indo.

 

Fecha os olhos, ao se referir às nefas causas.

 

— Deus foi servido, por calcular, que o ano ficasse um dos muito lembrados. Ora, pois, o quê. A gente pensa que vive por gosto, mas vive é por obrigação. Pouquinha dúvida. Deu seguida que o tempo negou o certo. Passou outubro, passado novembro, mais dezembro, então. E credo nisto: que não e não chovia. Agora, era o estado da seca. E mal é ver que ninguém resolvia plantar, para não perder sem roça seu sementio. Sem mais os pastos, boi se via vendido às pressas, no esparramar. Todo o mundo, cada um, foi se cabendo dentro de si, ganhando conselhos retardados e produzindo medo de pobreza...

 

Sobre os campos enfraquecidos, os ventos não vinham vindo das serras. Saudavam-se ausentes chuvisco e orvalho. Sobrava o céu, feio, vazio — de onde só o azul se dependura. Depois, chovia era terra, e pesava a poeira em qualquer folha. Mesmo nem mais quase folhas. A qual aridez. Os córregos cortavam. Enxuto e verde, negro, o fundo estorricado das lagoas. A seca: um saara. Sempre, o sobrejante calor, que chega a cantar uma cantiguinha fina, quando o sol está tenebroso. O sol de rodela de ananás, ardendo numa boca-de-forno, no céu insensibilíssimo, que se branco.

 

— O povo, em pragas, rezava. Naquela época atual, o que é mais que haviam de fazer? Pelejavam com seus usos, não podendo e não regateando, precisados de uma folga de Deus. Estipulavam novenas, no rogar forte, senão que faziam altas promessas. Saíam com o terço...

 

Sucedia haver desfiles penitenciais — as pessoas arcando com pedras nas cabeças. O terço, porém, era só procissão simples, no arrocho do queimar do dia, o padre tirando o canto e mulheres e homens respondendo.

 

— “Glória seja ao Padre, glória seja ao Filho, ao Espírito-Santo e seu amor também.

 

“Ele é um só Deus, em pessoas três...”

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Conformemente.

E: “Ave Maria, cheia sois de graça o Senhor é convosco, bendita sois vós...”

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Exato.

 

— Seo Cesarino somenos disse que no poder de virtude daquilo quase que mais não queria crer nem acreditava. Mas, o que, bom é dizer, vinha a ser bazófias dele, irritado nos cabelos. Mentira central. No que, no devocioneiro de acompanhar o terço, ele também acompanhava. Ninguém deixou de ir, comum, para o transmudamento.

 

Segurava a grande cruz, revestido vermelho, o de opa, o Seo Coronel Regismundo, que ora não mandava e menos ainda abdicava.

 

— Daí, se em uns poucos e tristes dias, ele, seo Cesarino, entregou seu cavalão de sela, a ato de indenizar metade do que devido não protelado. — “Vergonha, a gente passa, a vergonha a gente perde...” — ele me destornou, no riso de incerteza de encobrir tristeza. O que foi a ser de noite, a horas de se fechar a venda. Parte em que ainda me quis lá dentro um tempo, para o espairo de se tomar o uns-dois-dedos de um debeber, na companhia dele e minha, ali, nós dois sentados. De bocejos em bocejos, ficou tarde. Tanto menos o tanto mais: as coisas em roda da gente, mas sem o valor nem o poder nem o possuir.

 

Seja se refira aos estoques de uma loja da roça, onde de tudo há — armarinho, fazendas, calçados, ferragens, armas, secos e molhados gêneros, toucinho, artigos fúnebres, tinta, cadernos, panelas e velas.

 

— Seo Cesarino estava completando de ficar desesperado. Me mostrou as prateleiras: — “Vejo o cheio, pego no vazio. Agora é que sei como o de-nada é grosseiro, grosso. Olho o tibi-tifufes! Só sujo, seco, e mofo. Tem barro, guardado aqui, que dava para um sagrado entupir de cova. E meu Pai, que queria que eu tomasse boa condição da venda, a modo de ainda deixar tudo melhorado, para os saudosos netos dele e os meus!” E assim. Isto é conversa registra.

Se via que o seo Cesarino se fazia desprezos de com aquela herança errada estragada: parecia nos remorsos do que nem tinha feito nem desfeito sem perfazer. Dava o perdido por remido, o despertencido. Desde que, já no canto, sozinho ele estava. Pouquinha dúvida. Mal é de ver que, mesmo falso fiado, grátis, somente vinha ainda, para adquirir dele, quem fosse tão precisado e sem crédito de não se prover em outronde próprio lugar. Mesmo eu, conjunto com ele, amigo em fito fiel, agora só é que me espanto que me alembro: de que, lá, quase que nunca eu comprei, nada, conformemente. A gente só segue.

 

Se a seca se prolongava, morriam as criações. O povo voltava a sofrimentos muito antigos. Só os urubus sinuosos se trançavam no céu.

 

— Sendo que, com mais ou menos prazo, sobrevindo um ventozinho do ar, ou migalhinhas nuvens, ou dando umas trovoadas cegas, o povo, por regra, adiantava esperanças de consolo. Seo Cesarino, não. Só nervoso, cismoso, dava para se ocupar em si, por esmorecido, esbarrado. Ovo em meio do choco, goro ovo. Ele era o pobre de um moço que ia se ajudando a ficar velho, sofria o sem-conformidade. Ele já estava imediatamente nunca?

 

Seo Cesarino devia de contar uns 25 anos, se. Demais, o narrador, interrogado, desdiz-lhe qualquer real sinal de velhice temporã, e nem sabe explicar porque a isso se referiu. Dito foi, mais, que seo Cesarino deixara de correr às suas habituais caçadas. Decerto, porém, por conta do geral desânimo e em-vão, dado o calamitar suprareinante.

 

— Suceda. Do que meu, que sei, na véspera do que vem, como ao adiante vou tratar, ainda proseei com o seo Cesarino. De vez que um carro-de-bois se esteve entrastalhado, ao perto, e seo Cesarino, ouvindo os praguejos rebuliços daquilo, às artes, pulou para fora o balcão. Aí, tirou o paletó, prestes, arregaçou as mangas, nos compridos braços, pois. Acabou pelejando antes que todos os mais, não parou enquanto tudo não se botou remediado, por suas ordens de mandar e afinar providências. Num trabalho que para ele não suou vintém meio-réis de ganho.

Do que, depois, para sem hora nem demora, retomamos mais, juntos, um pingo e gole, e ele se respeitou meio alegre, tirando algum peso soltado, do demais do coração. Ponto em que dissesse: — “Agora, ôi. Ao que não tem mais arrumo. Se me, se mim, que me importa? Para não nascer, já é tarde; para morrer, inda é cedo. Pior do que as coisas já se dizem que estão, ao menos não têm mais ameaça de outro piorar...”

 

Contra o que o fato daria a supor, seo Cesarino jamais se embriagava, nem mesmo recorria com frequência à bebida. E é notoriamente sóbrio o narrador. Serviam-se, um e outro, de copos, dos menores. A monotonia, ali, é que era aumentante. Só o tempo, temporoso. De fora a fim, no arraial, quando não gemiam os carros-de-bois, os galos, de dia, cantavam, a todo pesado momento.

 

— Cá, eu ainda mais calado, encoberto, se rente. Desgosto de oferecer minha opinião, conformemente: fico resistido, de meio no talvez.

Deciso, então, seo Cesarino desfechou num rompante, desses, de nada antes de nada. É bem de ver que, tras hora, um rechupa alívios novos — de de-dentro mesmo da cuia da aflição. — “Justo, um dente de menino, que cai, é outro que vem já apontando...” — resumo que ele mais disse, sem dar a razão de seu dizer.

Gostei, daquilo, demais. O Homem do Pinguelo eu acho que estava lá, remirando a gente. Ele, às vezes, fio que costuma aparecer assim, em portas de vendas...

 

Oh. E estava-lhes ali, aos lados?

 

— Resta pouquinha dúvida, que vem no poder dele. O que ele consegue. Porque: quem é, tem que ser! A gente a si mesmo se ajuda, é quase sem se estar sabendo o que se faz. Assopro de fôlego, o silingornir, conversinha com a vida, essas brandas maneiras, de de-dentro...

 

Aqui, um floreio deceptivo.

 

— Das coisas que a gente vê, a gente nunca percebe explicação. Cada caso, tudo, tem mais antes do que em ponto.

 

— O Homem do Pinguelo?

 

— Dessa forma dito é, quem não sabe saberá. Modo de referir, conversa dos antigos. Quem é que ajunta, no escuro, o que no claro vai aparecer? Nem não há nenhum lugar de nenhum momento.

 

Porém, é peta, o jogo de adivinhas. A estória camba para uma segunda parte.

 

— Saí eu cedo do arraial, no outro dia, por não ter obrigação minha à mão, queria render visita a um parente meu, morador meio longe. Passei a cavalo, por diante, mas bem que a venda de seo Cesarino se estava ainda fechada. Subi o beco, atravessei a ponte, peguei a boca da estrada. O viajar, naquela nossa ocasião, perfazia poucas alegrias. Aí e ali, nem um verde, quase, as roças nenhumas, não revivia nada. Eu ia pitando, imaginando ou não o que é bom ou não, a fito de desimaginar os seguros males. Departi do caminho, pela mão canhota, para ir poder saudar os vários conhecidos, de por lá, obra de meia légua, e vim revirar na outra estrada, aonde o ribeirão dá volta. Na Passagem do Ingá — que já de si é de vau — de água se via quase que só um fiapinho.

 

E há que ali é tão recatado bonito, porém, que dá para sonho de banho de moça; e que devia compor-se uma canção:

 

Na passagem do Ingá o rio é raso, na Passagem do Ingá o rio é bom... — Sei se serve. Mas eu estava deixando ao menos meu cavalo sorver o beber, por esse enquanto. Ao fim — quê — quando escutei toques de berrante: o hu... huhuuhuu... hu... e mesmo, logo em pós, a tropeada e o aboio de vaqueiros. Ah, uma boiada, por lá? O fato, que havia de ser sombração. Mas, não é que não, não; e que era de verdade?

 

Decerto, vira-se o condutor dos bois forçado a deixar a grande rota cumeeira, sem pastos, falha de águas. Optara, daí, por um itinerário de fortuna, a seguir, o mais possível, o ribeirão, onde resta sempre, aqui ou ali, alguma vegetação marginal, embora escassa. Seja, de qualquer modo, que estaria o boiadeiro ante todos os problemas — almirante em mar secado, com suas favas mal contadas, aprendiz do que não quis...

 

— Aqueles bois se sumiam e surgiam de magros, suas ossadas espinhando. Tanta miséria em mal-amparo, em maus cavacos, no cabo de se olhar dava gastura. Os vaqueiros, mascarados, que de só poeira, e desgosto. Atrás da comitiva, a gente esperasse de ver aparecer a Morte sensata, amontada em seu cavalo, dela, alvo, em preparo, gadanhando. Não, não, ainda não era. O não.

Era mas um dono homem, quem vinha na culatra, sujeito de cara de lua das luas, desabado posto o chapelão. É ver que pitava, cigarro de palha, o cigarro comprido fora do costume. Vinha sobre um burro dourado, mulo grande, gordo feito o cavaleiro. O pró de parecer, deles dois, se sobressaía ainda mais estúrdio, no frisfruz de movimentos daquela mazela de mau gado — que se ia para o não adiar, por não-onde.

Dito que, logo, no redemoinhar de parar, umas das rêses se desceram, de joelhos e deitadas, para não prosseguirem dali. Assaz os outros entravam no cano do ribeirão, pelo fresco, por água, e catando folhagens, abaixo e arriba. Nem podiam brigar por algum ramo pendente, e outros penavam, é ver assim, por cavacar o chão ao modo de tatu, em instâncias de nem achar o que comer, raízes. Ou os que se atascavam, frouxos, no lurdo da lama. O triste rodeador! Os quartos de um boi daqueles, que se carneasse, davam mal para iludir a boa fome de uma pessoa. Aí berravam, pedintes, por algum capim não avistado.

Simples, que o senhor gordo, que era o boiadeiro próprio, se apeou do burro, e foi se sentou direto na beira do barranco, debaixo de um pau-d’óleo de outroras sombras ramalhudas. Assim, todo capitão, chupando seu cigarro, dele, de palha, seja-me Deus válido. Semelhava o Pitôrro...

 

O Pitôrro é uma aparição grotesco-fantástica, do repertório dos tropeiros. A parada da boiada explicava-se pela hora do dia, ainda mais em suas pobres condições, carecendo de frequentes repousos. Também a

Passagem-do-Ingá não fora ponto mal escolhido.

 

— E ele se nomeou: que se achamava Mourão. Me disse. — “Onde é que o senhor existe?” — foi me perguntando. Falei que morava dali aqui a légua e quanto, e declarei a situação do arraial. Conforme a verdade, de que, pasto, por cá, não se achava, de nenhum jeito, nem um capim seco, quase, para se pegar fogo riscando fósforos, e o que era muita pena. O homem ficou quieto como quem quieto, com o pito. Devia de estar num cansaço de segundas semanas, os olhos com certas olheiras, fundos, conformemente, mas no centro daquela gordura, pura, que puxava para inchação. Depois, sacou da algibeira uma tesoura pequena e começou a acertar as unhas dos dedos, em vagarinho, vai. Como se tudo com os bois e com ele sucedesse pelo perfeito trivial. Capaz de ficar quieto no inferno. Ele estava gostando imediatamente da minha companhia.

 

Nenhuma pausa.

 

— Dei tento nisso. Fiquei sentindo falta de falar alguma firme coisa. Indiquei o céu, e defini que a másorte era de todos. — “O mais penoso é para quem viaja...” — ele rescruzou. — “Boiadeiro, quando morre, até o demo a ele socorre...” — disse. Correu dedos pelo queixo. Do homem, aquele, Mourão, ainda até hoje melhor me alembro. O rechoncho, reboludo, no esperativo, mal e grave. Mas enxuto de ideias, com a cabeça comportada — subindo para as glórias da forca — em clara situação. Rente, assim, a cara de lua, no ruim reslumbre dos dois bois magros, era ver esses coqueiros que restam em pé no campo morto da queima e seca, viçoso ele só, quatreado de cocos. Haja-me.

Ele principiou a fazer outro cigarro, conforme calado. Picou o fumo, palmeou, vagaroso. Por umas duas fipas, que caíram, ele procurou com os olhos, e apanhou, que nem que pulgas catasse; é triste ver o gordo se abaixar. — “O que eu estou caçando é sossego...” — ele disse. Era homem sem flagrante. E o sossego dele, mesmo, por demais, pasmava a gente, mentindo ali o remexer das lástimas, com os vaqueiros todos no alheio tristemente e qualquer berro de boi que era um arquejo feio.

Em meio ao que, davam de chegar outros golpes de gado, a boiada era até bem grande. Então eu falei: — “Uns já estão se desistindo...” E ele respondeu: — “É. Eles, aos punhados, já vêm vindo se indo. Estão rasgando meu dinheiro. Onde que, neles, está o cobre todo meu, tudo o que eu pensei que meu era...”

Dos fatos que falava, assim, mas sem o estado de se queixar, conformemente, enquanto que puxava aproveitada a fumaça toda do cigarro, tirei por mim: que o prejuízo dele estava para ser tão grande, que o homem já devia de meio se aquietar, que resignado, para cá do para lá do morro da derradeira desgraça, e as outras desditas de acompanhamento, de perdido por mil, com tantos atravéses; pois — mil é metade de nada.

 

Mourão teria ido adquirir muito longe aquele gado. Fazia isso todos os anos, mas começara com cabedal pouco, talvez como capataz de ricos patrões. De miga a migalha, reaplicara depois de cada vez a quantia ganhada, trazendo rebanhos sempre maiormente. Viajando, sem parar, em sonho de descanso, a vida toda e mocidade; e, agora, que conseguira um boiadão de aguar inveja no espírito dos outros, com ela naufragava no sair do sertão, no vago da grande terrível seca territória.

 

— Vieram dizer a ele mais um pouco do que não é de se gostar de escutar. O Mourão ouviu e reouviu, perseveroso. De em de, que balançou o estar do corpo, um leve, da cintura para cima, a barriga sem abreviação. Mas o redondo da cara de lua se permaneceu liso, sem carrego, sem se franzir nem cenhar. Daí, sacou de algibeira lápis e caderneta. Como que foi tomando nota. De quantos bois se estavam findando ou por findar, ele regesse as contas. Conciso, e forro de pressa nenhuma, fresqueteco. Do que, perfazendo mais contas, com todo o bendito cuidado, ele relambia o lápis, em ponta. Ele reduzia como fechados os olhos, para o sozinho poder mais pensar, de mim se esquecido, de quem era eu que ali estava. Eu, esperando. Por tudo ser de bem se ver e aprender. Isto vinha por depois.

De seguida, chamou seus vaqueiros, expediu que uns deles saíssem, fossem, por rumos e bandas, avantes. Ao acaso que topassem com a qualquer veia de cacimbas, fundo de várzea, rego ou restar de córrego, e sabichar ainda aonde algum verde, de boi se avir. Admiro que ele falava manso, explicado, no propor ordem das providências, conformemente, e a um e um de sua cada vez. Demais que eles escutavam com a aberta atenção, que com respeito.

Deixei o homem sentado ali, vim me desanimar com os bois, prosear com os vigias vaqueiros, dar o ar. De daí, retornei para perto. O Mourão se permanecia do dito jeito, conformemente, ao pé de uma grande árvore. Ele não arredava passo de lá, daquela sombra, curtindo a calma. Mas, foi, ele mostrou um papel, com lista que tinha assentado. O que eram: dúzia de velas, rapaduras pretas e claras, sal, vidro de remédio, e mais o mais. Me perguntou os preços que no arraial haviam de pedir, por cada espécie. O que eu respondi, ele lançando tudo, decorrendo que somou, as quantias com as quantidades. Tirou o dinheiro, escolhido justo, tostão por tostão, o que carecia. Foi me entregando, e falando que eu lhe prestava a ajuda importante, caso que se eu fosse quisesse ir dar um pulo de volta lá, no arraial, para aquilo comprar e trazer. Já que ele não podendo enviar outro, ninguém, os vaqueiros se necessitando solertes pelo sobrestar e pajear o gado.

Me pegou pelo lado aberto. Porque, do incumbido que me dava, digo, ele expôs o mando tão natural, que eu achei certo que devia de cumprir, render ao próximo aquela demão, seu recado de encomendas. Só perguntei, achei exato, se ele não havia de gostar de comigo vir junto, aproveitar a folgância, ainda conhecer mais um lugar. — “Confere comigo não”, — ele abreviou no que respondeu — “com minhas horas...” Mas foi convite dele mesmo, logo assim, que eu já não saísse, mais ficasse para poder esperar o café. Com o que, cruzou mão com outra, esperto quieto, parecia padre.

Seja que o cozinheiro trouxe o café, tomou-se. O

Mourão pegou para si dois canecos, e cheios, que primeiro deixou de banda, esperou o café todo se esfriar. Depois, bebeu, devagar, regalão, poupado, suspirado; bebia segurando o caneco com as duas mãos, grandes, feito se quisesse tapar-se a cara, ao que nunca se viu alguém fazer o sistema assim. Me deu fumo e palha; falou: — “O senhor pita e vai.” O modo de voz se completando tão positivo e bem-criado, que eu, que não sendo serviçal dele nenhum, mesmo achei, pelo fato, que não me rebaixava com intimativas. É bem de ver que ele não se levantou, nem para beber água. Mandou o cozinheiro ir buscar, num chifre. A miséria daquele homem se pertencia com farturas. Ainda me pediu para amilhar o burro dourado. O esquipático! — por força que eu tivesse de começar a achar. Mas fiz, para não ser bruto fora de ocasião. Peguei a pensar que ele fosse mesmo doente, com algum resguardo, resumo de paralisias.

 

Se com esse nome — de Mourão — se encontram no sertão alguns, de mais de uma estirpe, inclusive aquele, incognoscível, patrono da muda de dentes das crianças, difícil é ouvir-se e crer-se, contudo, de um assim, tão obstinado no estranho.

 

— Chegando vinha era o mestre-vaqueiro. Deu-se que ouro ele tinha achado: um refrigério, bom sobejo. O lugar, por milagre desses que em alguma parte e em todo tempo há, ribeirão abaixo, por entre barrancos e brejos, onde teimava um minadouro e viçava o capinzal guardado. Mas o dono daquilo estava com sua ipueira cercada de arames, e ficava coimeiro tomando conta, com mão em espingarda e trela de cachorros bravos. O capim, ali, valia mortes.

Mourão escutou, a porção de vezes. A fato, indagava: — “Em quanto a boiada podia rapar, naquele destino de pasto? Se em dia e meio ou dia?” A bom, o vaqueiromestre lá voltasse, falasse, fizesse, o dinheiro bem mostrasse. E a voz dele ficava meditando: — “Dinheiro vem, dinheiro vai. Pior é praga de mãe ou de pai...”

 

Só, por lá, além dos bois, as árvores da beira e o rojo ruído do ribeirão, ter-se-ia, o quanto plus, o pio embusteiro de algum bem-te-vi bem alto, e o calor mortal, sitiando a minimidade das sombras. O vaqueiromestre, testemunha humana, chamava-se aliás Agapito.

 

— Sucinto que, a partir desse rumo, em tempo de três partes, conformemente, o negócio feito se acertava. Só para não se acabar logo, com a boiada enganada, por enquanto. Mourão estava abrindo de si seu dinheiro derradeiro — a senhas e portas. Me fiz triste. Montei, para vir executar para ele a diligência das compras. De dó, só. De minha pena.

Momento que foi outro meu espanto. Mourão então pediu perto o burro. Se se levantou do antigo lugar! Era ele — tão nhanhão não, nem com o tolher de achaque, nenhuma doença. Pouquinha dúvida. Tanto que ficou em pé, garboso, forçoso, a barriga imponente, me olhou me olhado, demais. O que perguntando, dizendo: — “Será que, por alguma vez que seja, a gente pode estar mesmo certo do que faz?”

Tomei sentido. Dizer o quê, eu não. Não imponho de graças, nem vendo conselho. Mas o homem se sacou para outros ânimos. Vascolejou de si um influído jaculado, proezas de satisfação: — “Tropeçar também ajuda a caminhar!...” Disse, assim. Muito. Gostei daquilo, demais, achei toda a clareza. Quem é, tem de ser. Na boa hora, o Homem do Pinguelo devia de estar com a gente, remiroso, por ali, eu acho. Se diz que ele é velho para surgir, nesse vezo, do jeito, em parada em paragem de beira d’água. Vem só para fazer mercê de presença, conformemente.

 

— O Homem-do-Pinguelo, o próprio?

 

— Cujo, para atalhar os motivos das todas dúvidas. E mais não sei, nem saberei, no meu fraco não dizer. Tudo, quanto há, é crendo e querendo: É calando e sabendo...

 

Seja que possivelmente se desgoste com a interrupção, tendo-a por impertinente, absurda, ou tomando-a talvez também como crítica à veracidade da estória e narrativa.

 

— Do que, entrementes, o Mourão se mexeu, postou a mão em meu ombro. Mesmeamos. E ele foi andando, cabeça ante cabeça, cauteloso. Subindo no animal, aconselhou ainda, tim por tim, aos vaqueiros, o uso de todo proceder. Em tanto, que me disse: — “Eu vou, também. Dia e meio de folga, quero aproveitar para passar dentro de casa, dormir regular em catre, ver a vida de um lado só...” Falou. E viemos para o arraial.

 

Se em longa pausa elide o tempo da viagem, é que parece também sozinho rememorar a extrema ligeireza dos fatos, há tanto passados, ou, mesmo, talvez, só em mente, na devida escala fazê-los caber.

 

— Desde a rua na entrada, a gente topou perto com o seo Cesarino, o qual dava suas quatro pernadas por ali, conformemente, abotoado de nervoso. Sempre diante da venda dele, que era uma das primeiras casas, conformemente, nessa beira de ar. Seo Cesarino viu a gente, e fixe, fixe, veio. — “Desapeia, José Reles!” — ele me convidou.

Respondi que, no hesitante, eu estava com aquele senhor. — “Desamontem os todos os dois, duma vez, pois então!” — seo Cesarino me rebateu. Aí, pelo que pois, foi o Mourão que falou: que agradecido, do bom obséquio, mas porém estava caçando era pouso.

— “Pois arranche aqui, o amigo de fora, exato, que tem cômodo...” — seo Cesarino fechou, pela franqueza do agrado. Sumo, vai, foi ele mesmo querendo ajudar o outro a descer do animal. Dizer: que quase forçando o homem burro abaixo. E botou o Mourão em pé, no chão, e empurrou o Mourão venda a dentro. — “E por aí, como é que as coisas vão, seo Cesarino?” — dito que perguntei, a pergunta para os ares, porque ainda na véspera eu tinha bem ali estado com ele. — “Vão como que não: eu com a água, outros com o sabão...” — ele quis, que me chumbeou, dês que certo.

O Mourão, num enfim, já se tinha todo sentado em cadeira, fofo descansando braço no balcão. Sem chapéu, ele parecesse outra pessoa. Dito que lá não tinha mais ninguém, só vistos os nós três. O puro de tudo se dando fresco, bem haja que sossegado. Só o sol, nas portas. Mourão quis um gole d’água, bom é dizer que ele bebidas não bebia. Eu trouxe. Eles dois já estavam conversando.

 

(Regulem-se as revezadas modulações, mas que ressoam contínuas, quase superpostas, no avivo do diálogo:)

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— “Isto, que está vendo? É peta. Isto não são mais mercadorias. Sim o cisco, lixos. Tivesse por aí menos lugar, em prateleiras e caixas, um podia era botar fora — tudo de tudo. Acho que ainda era o prol de proveito de lucros que se tinha: o modo melhor...” — assim o seo Cesarino, sem paz, se ouvia falando, de si e do seu desfazendo.

— “Quando foi o derradeiro balanço, que o sr. deu?” — o Mourão primeiro perguntou.

— “Meus, meus! Balanço?! Ora, que em barros velhos e cacalhada sem o mero valor? Seja. O meu bom Pai que muito me perdôe...”

— “O senhor seu pai é quem é o dono da venda?”

— “Ah, foi. Meu Pai é falecido, eterno em retrato...”

— “Ah. Não arrepare. Ideias minhas ainda estão fora de ordem...”

— “Não por isso, meu senhor. Eu mesmo é que tenho de ser o dono legitimário, legal, deste estrago, por mau amor deste lugar...” — a modo de remoque.

O Mourão parou de fazer um cigarro, desencarando o seo Cesarino. Para si, falou, pelo sozinho, revelamentação: — “Ah, nem pai, nem mãe. Essas minhas pessoas minhas, que eu nunca tive...” — e engoliu, engolinhado. Seo Cesarino, de estouvo, pulou o balcão, para dentro, pegou a espingarda, de donde era que estava dependurada. Repulou para fora, chegou na porta. — “Arre, lá, outra vez, o alma penada!” — resmungo que disse. Aí o que era: um gaviãozinho carijó, pousado no tenteiro.

O Mourão, sem acender, inda lambia o cigarro. Os olhos dele piscavam pelo querer poder pegar de ver os antes começos das coisas. — “Saiba que estou e não estou com uma boiada, na beira do ribeirão...” — depois ele principiou a contar.

— “Hum? Hem!?” — e foi o seo Cesarino desmanchar o que apontava, desistido de dar tiro no gavião, e virou a comprida cara para cá. — “Boiada, por esta má altura do ano? Com a seca brava? Que é que o senhor vai fazer com esse trem? Onde é que ela ficou?”

— “Para baixo do Ingá, na grota do André...” — eu expliquei o restante.

— “Então, pelo que não...”

Seo Cesarino pegou a sacudir, sisfraz, a cabeça. O Mourão, sentado todo certo, pesado em si, olhando, altos olhos nesse ensimesmo, ele nem mudava o parecer da cara. Eu, é porque eu em fatos nunca que fico nervoso.

Avistei o mundo em geral.

 

Pausa.

Abaixando a entonação:

 

— Entendo que foi principiando a se ficar nos ares que seo Cesarino indagou: — “As quantas cabeças?”

O Mourão, supro, sossegadão. — “O que devem de ainda regular por umas seiscentas, no contando por fora as que eu descontei para acabarem de morrer amanhã, ou hoje. Os todos — uns tantos esqueletos — veja o senhor.” — foi o que o Mourão disse; que não se alterou, não soletrou.

— “Uma boiada... Virgem... enorme dessas... Nossa! E passados tantos dias de caminho...”

Seo Cesarino parou de balançar a cabeça. — “Há-de. Haja! Há-de que tem de ter um jeito!” — ele bramou, ele bem que pôs. Seo Cesarino tornou a abrir no ir e vir, largo nos espaços da venda. De si só, para si, ardentemente, ele pegou a falar. — ... “Sobras nenhumas de pastos, por aqui, rapador nenhum, não tem socorro. Seiscentas... Seô Caetano... Até distância de cinco léguas... para lá do rio, rancho do Coqueiral... para acomodar os gados... no Cachorro-Manso... duas léguas e três-quartos... na tapera do Cocho... no Duvijílio, tem um brejal, no ermo... Será, que? Se há?” Apontou, encostando o dedo no peito do Mourão: — “O senhor possui bons vaqueiros?”

— “Digo: a laia de primeira. O que é, é que eles não navegam neste mundo de por aqui. Os campeiros, que vêm, vieram, de longe...”

Seo Cesarino esbarrou de caminhar, mas ficado em pé, conformemente, espingarda na mão; com a outra batendo no balcão, com os duros dedos. O Mourão, desprincipiado do cigarro, fez os gestos para cuspir; mas viu a venda em limpo chão, conservou na boca. Deu mais tempo. Daí, de frente, perguntou: — “O sr. tem interesse por boiada?” Fiquei muito acordado.

 

Pausa — de circunstância.

 

— Presumo que o seo Cesarino nem ouviu o que eu ouvi. Ele trespulava o balcão, vez para dentro, tornou a pendurar a espingarda.

E nessa hora foi que o Mourão se levantou: coçou os olhos.

E o vedes-vós. Esse homem — cara-de-lua, com tantas pachorras de nascido, como seja que era — cada vez que ele isso fazia, a gente se admirava. Daí, mais, porém, fez o que não se achava possível sem o pasmo: pulou também, para a banda de dentro, xispeteótico. E deu de caminhar, em vem-vai, outro também, próprio, somente vagaroso. Dito que andava e olhava, num lince de olhos. Dito que a gente vendo. A gente notando o bem bom se prezar que se dava de repente na redonda cara dele, seu virar de espírito, que exato. Onde que andava e olhava, e pegava a examinar. Pois, examinando, e querendo pôr mãos a tudo, mesmo nas prateleiras remexendo. Onde, no que bulia, só dizia: — “Fazenda boa. Chita? E isto aqui... caixa de suspensórios... botina de homem... enxadas... botões de calça...” De se ver, do desusado operativo expedito naquela movimentação, o Mourão, dado a desejoso, aí guiando suas vistas a todas as partes. Declarando querer a descrição de tudo, certo a certo, por gravidade: — “Bom. Ótimo. Bom!” — só dizia; só raspava as mãos na porcaria.

Estupendante que, em feito fato, tinha muito trem, lá, que seo Cesarino mesmo nem soubesse mais o que era o quê, os esquecidos. Pelo quanto o seo Cesarino, tem-te tempo, já estava de acompanhar rente o outro, respondendo o que explicando.

As coisas de nenhuma valia mais, só prestando para o dado de nada, mercancias no consumiço. Mas: — “Bom. Bom. Bom...” — o Mourão achava. Com a mente com que tudo gabava, falava a sério, resolvido, por puxar fatos, sem caçoar conversa, fornecido de coragem. O que avistava, parecia, para ele, o manjar dos olhos. E pegou em caixa de charutos, abriu. — “Ah, isto, sim. Há que tempos...” — disse, ele todo se suspirou no oh. Admiramos de ver, ouvindo aquelas tantas admirações. E porque ele estava feito menino pequeno — que só atende ao vislumbrado.

— “É tudo refugo — de rebotalhos — restos...” — seo Cesarino falou, abaixou os braços: lambia o vinagre.

O Mourão tirou um charuto, que logo todo se esfarelou. E pegou outro: que, também, nem. E outro mais outro, que esteve ainda pior, nos dedos dele, esfiapável. Mas foi escolhendo, apalpados, achou um são. Mamou, aí, mastigou o bico, acendeu, bafou, prezou a fumaça. — “Especial. Supimpa. Superior...” — veio dizendo. De repente e num túfe-te, ele desceu em cena — e fechou, franco, forte, soflagrado:

 

O narrador se levanta:

 

— “O senhor quer barganhar carne podre por fumo podre?”

 

Pequena pausa, de fôlego.

 

— Isto, eu ouvi. O que foi o desabe de pergunta que ele perguntou, de mão na ilharga. Decorreu o bruscamente, as quatro mudanças da lua. O se ser de labareda — num pulo e estalo.

Bom desatino! Quá... Nós todos três, de rir, desafinouse. Mas não era, se sei, um riso verdadeiro. Sei que risada fosse, para armar na gente outros jeitos de seriedades. O tamanho tanto, no relance da forte notícia. Igual a essa, só esta! Igual a esta só essa: o Mourão, querendo trocar a boiada pela venda!

É ver que é ver, bom é dizer: que vi. E ninguém era dono desse silêncio. Seo Cesarino empinou a cabeça. Seo Cesarino tossiu fora de propósitos. E o Mourão vindo de lá, de roda volta, charuto na mão, mastigando os beiços. Ombro por ombro um com o outro. De um lado, o homem; de outro lado, o homem. Eles estavam lá, os abismados.

Onde pois foi então, naquela juntura. O em que eu dei fé, de uma aragem em fino, do vero que se dava para estar para acontecendo. Tudo subido sensato, no ensejo pontudo, positivo mesmo. E onde cantaria o galo? Chega que eu entendi. Sei o porquê, sem saber. Hoje, acho que sei. Que, naquela paz de hora, devia de se ter surgido para estar ali, com a gente, o... O desencontradiço... O bem-encontrado... O...

 

Hesitação, de constrangimento.

 

— É. É o que pode dar razão, nos fatos mais acontecidos. Eu acho que acho. Tiro por mim que devia de ser.

 

O narrador torna a sentar-se.

 

— Pelo dito. Pelo depois. Mas, o que ouvi, que foi o seo Cesarino depor, conformemente: — “Tem a casa da venda, e tem o fundo-de-negócio...” E o Mourão: — “Tudo se acerta. Tudo se acerta.” Disse, consoante aquela côrda voz. — “Tem as contas, por pagar ainda aos cometas...” — “Tudo se acerta. Oferta leal é porta aberta...” —; sem um acabar de falar, para o outro começar.

O mais é só para resumos — o que houve, até à avença; e o que eles se estipularam, cujo e a quem. O que foi nuns momentos poucos, depois do fim. Concordou tudo, no entrementes, enquanto calei minha boca, nem pensando. O Mourão me olhou, prosseguindo seu charuto. Seo Cesarino, gesticulado, me olhava. Eles dois, quites, tinham fechado o trato. Deram mão de amigo um ao outro. Feito, e feito ligeiro, a ambas vontades. Admirei muito, com meus maiores espantos.

Selaram pelo arremate, saído se-dado seguido, sem a regra das todas as praxes. Só assentaram em papel, rabiscado leve, quase que tudo na honra das palavras, para dar o cabo. O Mourão se chamava Pedro Mourão, da Pirapora. Seo Cesarino vinha a ser longe parente meu, pelo ramo dos Ribeiros e dos Correias Prestes.

Jantou-se, não se ceou. Tinha ido quem, por trazer o mestre-vaqueiro, às ordens do patrão novo, da boiada.

Seo Cesarino arrumava a trouxa, pouca, seus trens dele. Com efeito, o Mourão tomava entrega do negócio, estudando o livro borrador e as gavetas, metade do charuto em brancas cinzas. Vai, foi, quando reparou na espingarda, pendurada pensativa que estava. Então, disse: — “Convém levar, irmão. Eu, cá, não caço. Eu, só, às vezes, pesco...” — e ele era um homem atencioso, no estimável.

Mas, também, se via, na parede, no branco, o retrato, grande, do Pai de seo Cesarino. E seo Cesarino mal sorriu, abanou a cabeça. Pelo firme, pelo triste, aí falou, reto, para o Mourão: — “Este, não levo, não careço. Só lhe peço, se lhe mereço, o poder ele ficar aí, um sempre...” O Mourão bem sorriu, disse: — “Mal não me faz. Me honrarei. Me praz...” — o Mourão estava bem de acordo. Então, eles se despediram, assaz.

Seo Cesarino me chamou, no passo da porta:

— “Você comigo vem, Zé?” Saiu estrada a dentro.

Eu vim.

Viramos no pé.

 

Pausa, de fadiga.

 

— ... De por diante e por depois, nós, aí e então — entões, nos dias gastados. Para a parte do rio. Definitos nesse rumo, légua mais légua, no cascar do calor — essas brasas celestes — chão esquentado. Perante que, em pegado e suado pó, nas grossuras da poeira, poeira pele a dentro — a gente se empalidecia — de poeiras baças. Seo Cesarino, em mão de rédea, conformemente, com esta determinação; e eu na sela, de boa assentada. Para dar comboio àquele gado terrivoroso — em mugidume e embatume — e que não tinham integridade. De um lanço a outro lanço, a gente se encontrando com o desencontro: eh. Marmilhapes! Aonde, por um pasto, dentro de mão, a gente pagando outros e almas. São coisas não cridas, acontecidas: são alturas de lua. A gente no préstimo de perseveranças — ao que, beira-rio, tras-rio — caçando o caminho passável. Ao que: tem-te aqui, tem-te ali, lá e cá, tem-te acolá! Ao que: a grande paciência. Era de ver que — o caminho conseguido, ave.

 

Sob as principais estrelas. Segundo o grande sol das estradas. Sus urubus detidamente voavam.

 

— Tempo e tempo. E mal é dizer que: que o danifício — dar em perdição — o ir com aquele negócio até ao cabo. E porque. O ar não cheirava. O gado, miqueado assim, à melindreza, e que não se toca, não tem toada. Antes, mal caminhando, devagar, no meio de cada momento, no susto e pulo, no se escorar. Andava-se agora era de noite, e se via o rio — arriba águas. Seo Cesarino cavalgante em frente, forçoso de brio, chefitivo, com o engenho em fé e as mãos na matéria. O boi se acabando de mansinho, dando a ossada. Seo Cesarino, a fino fuso, com espíritos de quem ia fundar curral. Sem a pressa possível — por eles, por conta. Só o ir, que não podia ser de desabe desabalado. Inda’s que com o pai da gente, no fim da distância, no pau da forca se balançando. Seja, ou, que — o sangue saía, mas sem se desatar a sangria. Tinha de ser o que não e o quê: desatino vagaroso. E, ei, eis: — “Inda tem vivos?” — “Todos, afora os mortos, eh.” — “Inda, então, vamos...” os resfolegados.

 

Mas, melhorava.

 

Sensatamente? As montanhas amoleciam. Afiançavase um em breve vir de chuva. Surtos, se bem que — seu incessar, — os abutres feretétricos.

 

— Tempo depois de tempo. E o dia que havia de ser. Até que chegamos. Aonde que era guarida, o pique da esperança da gente, final próprio, terra de consideração. Isto que vi e admirei. E com os bois restantes refrescados.

Seo Cesarino, todo paulista, em chegando a gente — o estrondo — e em rompendo a manhã, dos galos. De toda a aurora. Sei que ainda estimo, quanto nos ouvidos, a voz de firmeza, dele, já mal no desapear, de rebate, aquelas primeiras palavras:

— “Seô Caetano!...”

A verdade — do que do homem — de ousado e obrado.

Tomei um alento.

Aqueles, em festas, currais, de toda a capacidade.

O curral abarcava.

 

Seô Caetano Mascarenhas sendo homem sábio, grosso, marechalengo, senhor de família e fazenda, todo dono da Ponte-Nova. Seo Cesarino parava, porém, ainda com todos os problemas — de quem ganhou uma batalha.

 

— Seô Caetano se avultou de vir ver. Isto, que ele estava de boa veneta — e em obrigação de proteção — por paz e amizades. Mas, que não podia, ele repetia; que para o fato nenhum jeito dava, achava.

Seo Cesarino, só portanto, dizia, com as muito entreabertas pernas:

— “Seô Caetano, quero não contrariar com o senhor, mas estou em meio da minha meada...”

— “Diacho, menino, a seca não é minha também? Eu, que com o gado meu na falecência, sobejos, em rama e caroço, que mal tenho, e nem restados. E já estou quase

no abrindo as porteiras...”

Seo Cesarino botou o I no pingo:

— “Seô Caetano, pois, o que eu trouxe, hoje, e aqui, é: imagina. O que é tudo o que inda hei — de meus possuídos...”

Seô Caetano, de grado, de grande, severamente se consternava:

— “Menino! Seu diabo, que triste loucura? Botou fora o que o seu pai para você ajuntou e herdou — botou? E ao que veio se meter, em feixe de estreitas talas...”

Seo Cesarino, fio que não escutava. Ele tinha mandado desaparecer a boiada — adentro dos curralões do Seô Caetano — em aperto de bem encurralada. Deu o declarado final:

— “Seô Caetano, o senhor me resolva. Sendo que me vou, vou, e senão onde. Só o senhor: faça e saiba.”

Seô Caetano, irrazoado, sanhou-se que inda gritou: — “Menos essa! Seu diabo, seu! diacho, espera. Dito, e para onde é que vai, menino, seu diacho, diabo?”

Seo Cesarino, mesmo, nem soubesse, à dôida. Isto vinha por depois. E tinha, decerto, para si, que não queria cair na razão. Disse que ia pelo virar as dobradiças do mundo. Largou pé de lá. Só tornou a montar, se sumiu.

Sumiu até de mim, se sei.

O resto...

 

— O resto, cumpria, ainda, ao Homem do Pinguelo?

 

— Houve o que houve e há e haverá. O que, de diverso, podia haver ou não haver, alguém por sorte saberá?

 

Pausa; franzida.

 

— Aos anos, que isto foi. Ainda que, por muitos, muitos, ninguém teve conhecimento, do seo Cesarino, de por onde andava — o que era que não fazia? E que boasartes, dele, de si, aprontava. A boiada, aquela, sim, se valera: achou-se assim enfim de poder rever os cinzentos verdejando, à sustença, nos pastos da Ponta-Nova. Salva, a meio, ou senão acima, do fim de estado em que se estava. Seô Caetano revendeu os bois bem gordos. Ao seo Cesarino certo enviou os importes da quantia. Pois.

Mas, por fato e final, quando dele se empunhando notícias — foram da grandeza dos evangelhos! Seo Cesarino, de rico, inteirado. Se diz que ele viveu e mexeu, em cidades. Diz-se que, sem desesquentar os pés, ele deu fogo de todo lado. Se não pediu, só não pediu esmolas, há-de. Sendo, será que, com aquele primeiro dinheiro, viajou e virou, conformemente, no vender bois e passar outras boiadas? Só se soube: que também, logo, com um tempo, pegou a compor o estável. Simplesmente que fez negócios grandes, dobrou, dezenou, engrossou fortuna. O que, porém — foi um caber de anel em dedo — e mais no enxerir no castiçal a vela. À conta inteira, com a dinheirama, que gira e despeja, conformemente, capitalista, agora vive em palacete, dono. O quanto é mais que ele tem? Alguém sabe. Ao que: reside com a vida.

 

Pausa, nostálgica.

 

— E o Mourão. O Mourão — então — que se saiba. Primeiro, o fundo-de-negócio da venda, arrumou, conformemente, as prateleiras e armários. De que não era maldita, aquela, sendo, discorreu, bem discursado. Mimou com os vinte: deu o dedo.

De onde ordem a tudo. De fato. E os cometas logo vieram, com créditos e arras. Pois. Veio o povo, mediante muito, para a muita freguesia. Para o muito comprar, e pagar, é de ver que. É de ver que ele, disso, como se já dantes definido soubesse, bem assistido e prosperado. Pois, bom é dizer que: nada, com ele saía para fora de nada. Devagar também é pressa. Seja, o que se diz: a carta errada, do ano passado, desta vez era trunfo! Donde bem, e sei; ah.

Mas, o Mourão, por si, pôs: lavorou, ganhou, parou empapado de rico, sumo dono do arraial, quase. De hotel, os botequins, a aumentada venda, de chácara afazendada, da bomba de gasolina e graúdo salão de bilhares. Da fazenda que comprou, o despropósito de terra, de alqueires, do Seo Coronel Regismundo dos Reis Fonsêca — tão olvidado. Além de que com limpezas de vida, o Mourão. Depois, morreu, lá, ainda em firme véspera de velhice, dando-se a extraordinária extremaunção, festivos enterro e velório. Muito, às muitas vezes, mais rico, do que o seo Genuíno, do que os turcos, todos. Formou impossível exemplo. (Inquieto:) Mas — e o senhor aprecia deveras, de esvaziar, a sustância desta vera estória?

 

Sobre o ser e aparecer, porém, do Homem do

Pinguelo, furta-se de ainda falar. Peremptório, recusa-se, chega a agastar-se. Saberá, decerto, que, a respeito, deva guardar o vivo silêncio, sob pena de alguma sorte de punição não-natural?

 

— Ora, vista. A gente fabulando — o vivendo. Será que alguém, em estudo, já escarafunchou o roda-rodar de toda a gente, neste meu mundo? Assim — serra acima ou rio abaixo — os porquês. Atrás de torto, o desentortado. Adiante. Todo lugar é igual a outro lugar; todo tempo é o tempo. Aí: as coisas acontecidas, não começam, não acabam. Nem. Senhores! Assim, num povoado...

Arraial. O arraial, que...

— É. Eu é que estive lá, junto, nas horas, em estâncias tão desiguais. Ali, primeiro, com um, depois com o outro, depois com os todos dois, para todos o sol nascendo. Eu vi e ouvi, tudo o que conformemente era para se notar, que se deu: fui flagrante de testemunha... Agora, não sei... 

E haverá, então pois, outra hipótese, nova suposição, e ignorada do próprio narrador, e teoria mais subtil? Bom é dizer que ousada demais, todavia, quase inaceitável...

 

— A gente vive sem querer entender o viver? A gente vive em viagem. (O narrador bebe cuia d’água.) Eu — eu não fui eu quem me comecei. Eu é que não sei dos meus possíveis!

 

Pouquinha dúvida.

 

É mal ver que o centro do assunto seja ainda de indiscussão, conformemente?

Dito o que ninguém diz, bom é dizer, nem — na paisagem — o nenhum passarinho, tristriz.

Isto viria por depois? (O narrador só escuta.) E mais não nos será perguntado.





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José Maria
28 de ago.
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Não é sem motivo que é um clássico

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