O Pacto do Silêncio e o Pacto da Consciência: Hemingway vs. Saramago
- Paulo André

- 7 de mai.
- 6 min de leitura
Atualizado: 1 de out.
Hoje, vamos colocar dois titãs no ringue, dois pesos-pesados da prosa que, com armas completamente opostas, nos ensinam a mesma lição fundamental: a escrita é, antes de tudo, um pacto. E é a força desse pacto que torna um universo literário crível.
De um lado, o mestre da contenção, Ernest Hemingway. Do outro, o arquiteto de labirintos verbais, José Saramago. Prepare o café, porque vamos mergulhar fundo em como eles manipulam o diálogo e a prosa para selar um acordo inquebrável com o leitor.
Ato I: A Arquitetura do Silêncio - Ação e Inação no Diálogo de Hemingway
Falar da Teoria do Iceberg de Hemingway é chover no molhado. Mas o segredo não está só na omissão, e sim na forma como ele transforma o diálogo em puro movimento. É aqui que entra uma lição essencial para qualquer escritor: a compreensão da ação (ou inação) no diálogo.
Não há exemplo melhor do que o conto "Colinas Como Elefantes Brancos". A cena é banal: um casal espera um trem, bebendo e conversando. Só que não. O diálogo é um campo de batalha onde as palavras são desvios e os silêncios são bombas. O conflito central — um aborto — nunca é nomeado. Essa recusa em falar, a inação verbal, é a ação mais violenta da cena.
Vamos analisar um trecho:
— É mesmo uma operação muito fácil, Jig — o homem disse. — Não dá nem para chamar de operação.
A garota olhou para o chão onde as pernas da mesa repousavam.
— Eu sei que você não vai se incomodar, Jig. Não é nada demais. É só para deixar o ar entrar.
A garota não disse nada.
— Eu vou entrar com você e vou estar com você o tempo todo. Eles só deixam o ar entrar e aí é tudo bem natural.
— E aí o que a gente faz depois?
— Depois a gente fica bem. Do jeito que estava antes.
Isto é uma aula sobre como silêncio no diálogo pode ser a ação mais dramática de todas. Cada linha é uma tática:
A Repetição como Arma: O homem repete incessantemente que o procedimento é "fácil", "simples", "natural" não é apenas uma fala, é uma ação. Ele está ativamente tentando reduzir a magnitude do evento, uma manobra para controlar a narrativa e o resultado. É uma tentativa desesperada de minimizar a magnitude da decisão, de transformá-la em um inconveniente passageiro para que possam voltar ao "jeito que estava antes".
O Silêncio como Ação: A resposta mais poderosa de Jig é o silêncio. A resposta mais poderosa de Jig é a inação: "A garota não disse nada". Esse silêncio não é passividade. É um ato de resistência. É um muro que ela ergue contra a simplificação dele, um espaço onde a verdadeira dimensão do conflito ecoa. Esse silêncio é um abismo. É nele que o leitor projeta o medo, a dúvida, a dor. A recusa em responder verbalmente é uma ação dramática mais forte que qualquer discurso.
A Ação de Desviar: Quando ela finalmente fala, não é para responder, mas para desviar com uma pergunta sobre o futuro: "E aí o que a gente faz depois?". É uma ação que expõe a falácia da promessa dele de que tudo voltará a ser "como antes".
O Gesto que Fala: Quando as palavras falham, os gestos assumem. "A garota olhou para o chão", "segurou duas das cordas de miçangas". São ações que revelam o estado interno sem precisar nomeá-lo. Ela busca um ponto de ancoragem, algo tátil para se segurar enquanto seu mundo desmorona.
A Ironia Devastadora: A última fala dela é a chave de tudo. "Depois a gente fica bem. Do jeito que estava antes." É uma facada de ironia. Ela sabe, e ele sabe que ela sabe, que a promessa de felicidade é uma mentira. A comunicação entre eles está quebrada, eles falam idiomas emocionais diferentes.
Hemingway nos entrega um quebra-cabeça. Ele confia na nossa inteligência para ler as ações por trás das palavras (e dos silêncios). Ele nos convida a ser detetives emocionais. É a celebração do não-dito como a força motriz da cena.
Ato II: A Arquitetura da Consciência - Navegando na Prosa de Saramago
Agora, vamos para o outro extremo do espectro. Se Hemingway é um cirurgião de palavras, removendo tudo que não é osso, José Saramago é um oceanógrafo da consciência, mergulhando fundo em longos períodos que se recusam a parar para respirar. Enquanto o diálogo de Hemingway é uma esgrima de ações ocultas, o de Saramago é uma torrente de consciência exposta.
A técnica de Saramago, com seus parágrafos intermináveis e a ausência de travessões, cria um efeito completamente diferente. O narrador não é uma câmera objetiva; é uma entidade onipresente que costura as falas das personagens em sua própria voz.
Peguemos, por exemplo, a conversa entre Deus e o Diabo em "O Evangelho segundo Jesus Cristo". Aqui, não há subtexto. Há a tese, a antítese e a síntese, tudo exposto com uma clareza filosófica assustadora.
Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro.
O que Saramago faz aqui? O diálogo é a tese. A ação não está escondida, está na própria articulação da ideia. A fala é um ato de revelação total. Se em Hemingway a ação é o que se esconde, em Saramago a ação é o próprio ato de expor, de filosofar, de conectar todas as pontas soltas para o leitor. Ele não nos pede para decifrar, ele nos pede para acompanhar seu raciocínio.
Ato III: O Vazio Criativo e o Pacto Com o Leitor
E então, qual a lição? A lição é que ambos, por caminhos opostos, criam um "vazio criativo" que exige a participação do leitor. E é aqui que entramos no coração do nosso tema de hoje e do nosso curso, A Arte de Criar Universos Literários Críveis.
A credibilidade de um universo não vem do excesso de detalhes realistas, mas da força do pacto entre o autor e o leitor.
O Pacto de Hemingway (O Leitor-Detetive): Ele cria um vazio de informação. Ele nos dá a moldura e confia que pintaremos o quadro. Ao aceitar esse desafio, nós firmamos um pacto: concordamos em trabalhar, em decifrar, e a recompensa é um universo que sentimos ter descoberto por conta própria, tornando-o profundamente crível.
O Pacto de Saramago (O Leitor-Navegador): Ele cria um vazio de formatação tradicional. Ele nos dá a torrente de tinta e confia que encontraremos nosso próprio jeito de nadar. O pacto aqui é de confiança: concordamos em abandonar as regras que conhecemos e nos entregar ao seu fluxo, e a recompensa é a imersão total em uma consciência, um universo que se torna crível por sua força avassaladora.
É sobre essa construção de mundos e sobre a relação fundamental entre autor, texto e leitor que nós da Letra & Ato tanto falamos. Entendemos que cada manuscrito tem sua própria voz. Nosso trabalho é ajudar o autor a selar o pacto mais honesto e poderoso com seu leitor. A pergunta que você, autor, deve se fazer não é "devo mostrar ou contar?". A pergunta é: "Que tipo de pacto quero firmar com meu leitor para que meu universo se torne vivo?".
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☕Vamos Conversar?
Seu texto está travado? Você sente que seus diálogos não têm a força de uma ação dramática? Ou talvez a relação com seu leitor pareça distante, quebrando a credibilidade do seu universo? Na Letra & Ato, nós não corrigimos textos, nós dialogamos com eles. Acreditamos que cada autor tem uma voz única e que, com a parceria certa, essa voz pode firmar um pacto inesquecível. Que tal nos enviar um trecho? Vamos tomar um café (virtual, claro) e conversar sobre o potencial imenso que sua história carrega, seja para aprofundar o pacto com seu leitor ou para tornar seus diálogos mais potentes.
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E eu que exagerava em tudo. Dica super legal. Ótimo conto!